quarta-feira, 3 de abril de 2024

Caso Marielle Franco: Incompetência Absoluta do STF

Remarquem-se algumas datas, porque elas são muito importantes para que se compreenda o sentido do texto: (i) o assassinato de Marielle Franco ocorreu no dia 14 de março de 2018; (ii) Chiquinho Brazão veio a ser diplomado deputado federal pelo Rio de Janeiro no dia 18 de dezembro de 2018.


E por que essas datas são importantes?


O Supremo Tribunal Federal, em questão de ordem na Ação Penal 937, decidiu que a prerrogativa de foro se limita aos crimes cometidos no exercício do cargo e em razão dele!


Ou, nas palavras do Min. Luís Roberto Barroso:


“Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções – e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade – é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo.”


Ocorre que, no caso de Chiquinho Brazão, nem em hipótese seria possível conceber que o assassinato de Marielle Franco pudesse relacionar-se ao exercício do mandato parlamentar outorgado a Chiquinho Brazão pelo povo do Rio de Janeiro, uma vez que a trágica morte dela se dera antes de Chiquinho Brazão ser eleito e diplomado deputado federal! Ao tempo do crime, ele exercia o mandato de vereador na cidade do Rio de Janeiro!


Para tornar as coisas mais claras: o Supremo Tribunal Federal só poderia julgar o caso se existisse um liame entre o assassinato de Marielle Franco e o exercício do mandato de deputado federal de Chiquinho Brazão! E isso consoante a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de acordo com a qual, repita-se, seria essa Corte incompetente para julgar processos em que deputados federais e senadores fossem acusados de crimes comuns sem relação com o exercício de seus mandatos.


Como não há tal ligação, nem hipoteticamente se poderia imaginá-la, porque o assassinato de Marielle Franco se dera antes mesmo de Chiquinho Brazão ser eleito deputado federal, resta mais uma vez indagar se o Supremo Tribunal Federal alterará seu entendimento para desdizer o que disse no julgamento da questão de ordem na Ação Penal 937 para todos os vindouros processos ou só desta vez; se esse episódio se trata de só mais uma exceção dentre tantas que vêm tornando o regime jurídico brasileiro num regime de… exceção!


sábado, 30 de dezembro de 2023

Para que servirá a Reforma Tributária?

  Depois da queda do muro de Berlim, inocentemente se pensou que as democracias ocidentais se espalhariam como um rastilho de pólvora. Seria o fim da história. No entanto, passados mais de trinta anos, o mundo parece bem mais complexo do que a doce antevisão de outrora havia sinalizado.


Exsurgiram enormes diferenças que foram ocultadas pela Guerra Fria. Civilizações e países que trabalhavam calados, à sombra das duas potências que atraiam todas as atenções, passaram a ser vistos. E o foram da pior maneira possível, com ataques terroristas, guerras de ocupação, piratas modernos, eleições manipuladas e todas as trapaças comerciais das quais as potenciais ocidentais pensaram ter-se livrado com o fim da URSS.


Nesse novo contexto mundial, o Brasil mais uma vez caiu nas mãos de ideólogos de esquerda que não veem a democracia ocidental como um valor em si, mas como um empecilho que haverá de ser transposto para que se perpetuem no poder. E isso unido a uma classe política tradicionalmente focada só nos mais mesquinhos interesses imediatos, permitiu que, no campo externo, o Brasil se juntasse a todos os que aspiram ao fim da civilização ocidental, como é o caso do Irã, da China, da Arábia Saudita e outros tantos. E, internamente, sem peias nem freios, fossem subjugadas as vontades e os anseios populares para que um novo regime político se instalasse. E uma das maneiras que será utilizada para se atingir tal finalidade é aquela sobre a qual me manifestarei aqui.


A reforma tributária, tal qual aprovada, além de todos os problemas técnicos que acarretará, dentre os quais se destaca o aumento absurdo da carga tributária que haverá de ser paga pela malta, implicará necessária e obrigatoriamente o fim da federação como concebida pela Constituição de 1988.


Os Estados e os Municípios perderão a capacidade de instituir e administrar a arrecadação dos tributos que hoje ainda os mantêm, mal e porcamente, e passarão a simplesmente receber uma parcela do montante a ser recolhido exclusivamente pela União. Ou, em palavras mais simples: os prefeitos e governadores serão meros prepostos locais das vontades de Brasília.


Essa concentração dos Poderes Político e Econômico em Brasília, junção que decorre da vontade daqueles que não têm qualquer apreço pela descentralização hoje vigente, fará com que o Brasil se transmude de um estado (quase) federado num unitário, em que os interesses locais não serão mais resolvidos pelas pessoas que vivem nas cidades e nos Estados, mas por aqueles que estarão sentados nas cadeiras da capital federal.


Se esse cenário interno fosse analisado em conjunto com o externo, com a união do Brasil com os países que são considerados os párias do mundo justamente porque detêm mãos de ferro para controlar seus cidadãos, poder-se-ia entrever que a reforma tributária servirá a interesses outros, que não a simplificação do complexo sistema tributário atualmente em vigor, com a centralização do Poder nas mãos da elite de um partido que vê a sociedade atual como um estágio a ser vencido para que sobrevenha um admirável mundo novo. Um no qual todos são iguais, mas uns mais iguais que os outros.



segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Quer um pastel democlático?

A furiosa perseguição política que o Supremo Tribunal Federal promove contra os opositores do regime é o ápice de um movimento que há muito tempo vem se desenrolando, cujo primeiro ato foi a soltura de Lula, preso depois de ser condenado em dois processos da Lava Jato.


Isso foi possível porque o Supremo Tribunal Federal alterou sua própria jurisprudência e só então passou a admitir a prisão depois do trânsito em julgado da decisão condenatória (ADCs 43,44 e 54). Antes, para a prisão de um condenado, bastaria a condenação em segunda instância. Parece uma mudança encomendada para livrar Lula da cadeia.


Depois, em uma decisão do Min. Fachin que posteriormente veio a ser confirmada pelo pleno do Supremo Tribunal, anularam-se todos os processos movidos contra Lula em Curitiba (PR), porque ele haveria de ser processado em Brasília, nuns casos, e em São Paulo, noutros (HC 193.726/PR).


Foram anulados inclusive aqueles processos em que Lula havia sido condenado, transformando-o de culpado em presumidamente inocente, decisão com a qual o STF brindou-lhe também com a restituição dos seus direitos políticos, possibilitando que concorresse nas próximas eleições presidenciais.


É bom que se diga que tal inusitada decisão, prolatada em embargos de declaração em habeas corpus (!), também configurou uma alteração na jurisprudência do STF, pois, como bem esclareceu o min. Nunes Marques em seu voto, a alegação de incompetência já havia sido rejeitada anteriormente! Bom, mas parece que o presidente Lula sempre consegue tirar da algibeira do STF uma mudança jurisprudencial que o favoreça.


Só que o min. Gilmar Mendes, que não é tão inocente assim, percebeu que os processos anulados, inclusive aqueles em que Lula havia sido condenado, poderiam ser reaproveitados pelos juízes de primeira instância. De fato, há uma regra no processo penal brasileiro que permitiria que os juízes de Brasília e São Paulo aproveitassem todos os atos processuais e simplesmente condenassem Lula de novo, rapidamente, impedindo assim que ele fosse candidato em 2022.


Ao se tocar disso, o que fez o min. Gilmar Mendes (HC 164.493/PR)?


Depois de o Supremo Tribunal decidir que os processos movidos contra Lula eram nulos, o que implicaria que deveriam ser encaminhados para as varas competentes para julgá-los, o min. Gilmar Mendes manteve-os no STF para declarar a suspeição do juiz Sérgio Moro.


Com isso, por regras processuais, os novos juízes dos casos contra Lula, de Brasília e São Paulo, teriam de começar os processos do zero, o que impossibilitaria que novas condenações impedissem a candidatura de Lula à presidência em 2022.


Em palavras mais simples: o Supremo Tribunal Federal fez o que podia e não podia para tornar Lula elegível em 2022!


Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal infernizou o governo Bolsonaro, impedindo que nomeasse ministros, prendendo seus apoiadores, suspendendo perfis na internet, calando deputados e senadores, chegando a prender um deles, tudo isso que as pessoas normais estão cansadas de ver e ouvir nas rádios e televisão.


Durante as eleições, o Tribunal Superior Eleitoral também fez o impossível para prejudicar a candidatura do presidente Bolsonaro! Chegando a tal ponto de tornar inverossímil o resultado das eleições em que Lula veio a ser sagrado vencedor! E isso porque os próprios ministros do Supremo Tribunal fizeram campanha aberta contra o voto auditável, numa atitude que seria, num país normal, no mínimo suspeita.


Passadas as eleições, com a proclamação do resultado e a posse de Lula, com o presidente do TSE sambando com Lula na festa de comemoração da vitória, as perseguições contra Bolsonaro e seus apoiadores triplicaram de força.


Agora estabeleceu-se, contra o texto legal (art. 2º, §2º, da Lei 13.260/2016), que os atos de vandalismo ocorridos em Brasília no último dia 08 de janeiro são terroristas, razão pela qual ordenou-se a prisão em flagrante (?) não daqueles que depredaram os prédios públicos, mas dos que estavam acampados em frente do quartel de Brasília, quer tenham participado da depredação ou não.


Incluiu-se também no interminável inquérito dos atos antidemocráticos o ex-presidente Jair Bolsonaro, por declarações prestadas no dia 10 de janeiro - posteriores aos atos de vandalismo, portanto.


Essa sanha persecutória, que não encontra amparo legal nem limites dentro do próprio Supremo Tribunal Federal nem em qualquer das casas do Parlamento, posteriores aos atos com os quais os ministros do STF beneficiaram Lula de todas as formas possíveis e impossíveis das quais dispunham, faz qualquer pessoa sensata indagar: de onde vem tanto poder assim?


Não se sabe a resposta, mas ao lembrar a desenvoltura com a qual o embaixador chinês desfilava por aqui e a proximidade ideológica de Flávio Dino e companhia com a China, pode-se imaginar que estejam a nos servir um pastel democlático.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Quantos ovos há na cartela?

Bolsonaro realmente deve ser um cara ruim. Muito ruim. Só mesmo tamanha ruindade poderia justificar o silêncio complacente com o qual os meios de comunicação, a academia e os democratas de ocasião aceitam o que está sendo feito pelo Supremo Tribunal Federal e seu anexo, o Tribunal Superior Eleitoral.


A coisa não começou com a anulação das condenações do Lula, mas ao fazê-lo, o STF deixou claro que ninguém lhe poria limite. Muito menos a Constituição Federal.


Relembro que se anularam tais condenações em julgamento de embargos de declaração em habeas corpus. Para quem não é do ramo, seria o mesmo que o juiz marcar um pênalti inexistente depois do fim da partida, pedindo para que os times, já no vestiário, retornassem para que fosse cobrado. Coisa nunca vista!


Continuaram com os inquéritos ilegais em que o Supremo Tribunal Federal investiga, investiga, investiga e investiga fatos criminosos que ninguém sabe quais são. Inquéritos nos quais os ministros do Supremo Tribunal seriam as vítimas, os investigadores, os acusadores e os juízes! Também uma novidade!


Importante lembrar que ainda há pessoas presas em razão desses inquéritos, sem qualquer condenação, cidadãos comuns que jamais poderiam ser julgados pelo STF, isso depois de parlamentares serem encarcerados por delitos de opinião, tudo também contra o texto da Constituição.


Agora o Supremo Tribunal e o Tribunal Eleitoral censuram veículos de comunicação e blogs, todos eles simpatizantes ou apoiadores do presidente Bolsonaro, porque estariam maculando a honra do candidato Lula, ligando-o aos esquemas de corrupção do seu governo, aqueles mesmos que renderam a esse candidato, de acordo com seu ex-ministro da Fazenda Palocci, dinheiro suficiente para que se aposentasse tranquilamente.


O que me leva a perguntar: onde estão os defensores da democracia?


Aqueles que bradam contra as prisões arbitrárias de cinquenta anos atrás não abrem a boca sobre as ilegalidades atuais? Os meios de comunicação também não dizem nada? E os acadêmicos? Esses parecem apoiar, com cartinhas extemporâneas que revivem dias gloriosos de luta contra uma ditadura extinta faz quarenta e tantos anos, essa insana busca de cercear a liberdade das pessoas comuns que seriam, na visão deles, a encarnação do mal absoluto porque eleitoras e simpatizantes de Bolsonaro.


Engraçado que esses democratas pensam que, com Lula eleito, as coisas retornarão ao normal. As instituições - essa abstração preenchida por homens de índoles duvidosas, cujos nomes podem ser lembrados pelo próprio leitor - voltariam a funcionar tranquilamente, pois, ao fim e ao cabo, a democracia estaria salva desse monstro que atualmente governa o Brasil.


Esquecem-se de um ditado antigo, do interiorzão do país, segundo o qual não existe salvação para cachorro que come ovo. Ele sempre quererá comer mais e mais e mais. Insaciavelmente. Pois é. E o atual Supremo é esse cão! O importante agora é saber se, eleito o Lula, quantos ovos ele terá na cartela!

sábado, 19 de março de 2022

Submissão de Michel Houellebecq

    Em Submissão, Michel Houellebecq narra a trajetória de um professor universitário parisiense, dotado de certa notoriedade, num momento (imaginário mas não distante) de transição em França: aquele em que um brilhante líder da Fraternidade Muçulmana ganha as eleições para presidente e passa a dirigir o futuro da nação que já foi considerada a filha mais velha da Igreja Católica!


    Relata, no princípio em forma de diário, suas desventuras amorosas com as jovens alunas para quem lecionava, sua vida destituída de qualquer sentido que não fossem os prazeres carnais, sua ânsia desenfreada para satisfazer-se a si mesmo e aos seus instintos, personificando aqueles que, como dizia São Paulo, têm o ventre como Deus.

    

    Esse professor inicia, enquanto as mudanças políticas são implementadas pelo líder da Fraternidade Muçulmana à testa do governo francês, uma tímida busca por algo sobrenatural, seguindo os passos de Huysmans, romancista do séc. XIX que na penumbra de uma vida devassa convertera-se ao catolicismo, a quem o prof. François dedicara seu doutorado e parte significativa de sua atividade acadêmica.


    Vindo de uma família destruída, solitário, sem passado nem propósito, François personifica a França contemporânea. François é a França. Alguém que vive de perambular entre a grandeza dum passado glorioso e o nebuloso e obnubilado futuro que se achega. Futuro em que terá de submeter-se ao Islã, não só para aplacar seu vazio existencial como para satisfazer os prazeres mais carnais.


    François e a França atual são uma coisa só, pois. E tanto um como o outro torna-se submisso à religião do livro, pois não há presa mais fácil para os seguidores de Mafoma do que aquele que joga fora sua própria identidade, a razão de seu ser, o propósito de sua existência em troca de confortos materiais outorgados por aquilo que os materialistas mais amam: um estado provedor!


    Eis aí o triste fim ao qual se chega nesse breve mas instigante romance.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Os Demônios

        Em Os Demônios, um dos livros mais interessantes e proféticos que li nos últimos tempos, Dostoiévski trata de uma célula socialista instalada no interior da Rússia em meados do séc. XIX, do caráter das personagens que a integravam ou com ela esbarravam, e também das relações de poder havidas entre tais pessoas; sendo que todas elas eram mentalmente atormentadas, perturbadas, enfermas por força do niilismo que então tomava conta da já ébria sociedade russa. E esse grupo era como uma legião demoníaca, aquela que Jesus expulsara duma alma atormentada permitindo que se apossasse duma vara de porcos que veio a jogar-se dum despenhadeiro. Eis a razão do nome do romance.


Piotr Stiepánovitch, o filho olvidado de um pretenso intelectual que vive à custa de uma rica proprietária de terras, resolve tornar à província depois de formar-se no exterior.


Imbuído do espírito revolucionário que grassava a Europa ocidental, Piotr Stiepánovitch monta nos confins da Rússia uma célula revolucionária com a qual pretendia colocar a velha e atrasada sociedade russa às avessas, destruí-la mesmo em seus alicerces  para que sobre os escombros dela surgisse outra, forjada de acordo com as ideias socialistas, uma sociedade capaz de parir os novos homens; os quais seriam capitaneados obviamente… por ele, Piotr Stiepánovitch!


E para isso, Piotr Stiepánovitch - que via a si mesmo como uma figura asquerosa, repugnante, coisa que ele fazia questão de sê-lo ao comportar-se de maneira rude e deselegante - necessitava de alguém a quem o povo pudesse seguir com admiração, um semideus aristocrático que desse aos seus planos luciferinos o verniz propagandístico do qual precisavam para que fossem adiante. E há alguém que se encaixa nesse perfil, exatamente o filho da proprietária de terras que sustenta seu pai. E o nome desse novo mas atormentado messias é Stravoguin!


Depois de uma série de peripécias que desencadeiam assassinatos, incêndios, roubos, loucuras e tragédias sem fim, a célula revolucionária é desfeita com o encarceramento de parte significativa de seus membros e o suicídio do messias de alma enegrecida, pois nem mesmo ele suportou a carga de seus muitos crimes e pecados.


Ou seja: no romance, a ordem da já combalida sociedade russa vence a desordem das científicas ideias novas! Coisa que não se repetirá na realidade aquando da Revolução socialista capitaneada por Lênin e do massacre que se lhe seguiu.


O livro é interessantíssimo porque demonstra, com análises psicológicas que só mesmo Dostoiévski conseguiria traçar, o perfil de muitos daqueles que querem construir um mundo melhor! São - e eis algo que o livro deixa claro, com seus diálogos atordoantes - pessoas que, diante dum vazio espiritual absurdo, tentam preencher suas vidas sem propósito (porque sem Deus) dando-lhes uma finalidade político-religiosa, um desiderato  ilusório que permita com que continuem a viver: a revolução socialista que conduzirá a todos a um mundo por elas idealizado!


Sem dúvida alguma, é um livro obrigatório para quem quer entender não só como se forma a mística que circunda os movimentos revolucionários, como ela é mantida e o modo com o qual se expande, mas também as causas do declínio civilizacional que permite o surgimento e o crescimento dessas novas religiões políticas.


Dostoiévski é sempre bom! Mas a leitura d’Os Demônios é essencial nos dias por que passamos.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Notas sobre a conversa entre Sandel e Barroso

Depois de assistir ao bate-papo entre Luís Roberto Barroso e Michael Sandel, resolvi ler o livro cujas comemorações pelos dez anos de sua publicação no Brasil haviam ensejado esse encontro virtual: Justiça!


E o que realmente chama a atenção nos argumentos de Sandel - postos sem meias-palavras na conversa que teve com Barroso, mas colocados de modo mais elaborado no livro - é a maneira com a qual ele deixa de lado a ideia de John Rawls de que o Estado liberal, para sê-lo, haveria de abrir mão das discussões sobre o que é o bem comum para servir como mero mediador entre as personagens que disputam seus pontos de vista no octógono social.


Sem dúvida que é uma guinada entre os pensadores americanos, principalmente aqueles mais influenciados pelo contratualismo, uma vez que, tal qual concebido, o Estado liberal jamais disputaria ou haveria de disputar qualquer argumento de fundo, limitando-se a permitir que cada pessoa viva sua vida buscando a felicidade da maneira como entende ser a mais adequada. O bem comum, nessa perspectiva, seria a manutenção da ordem capaz de permitir que cada indivíduo viva de acordo com suas crenças pessoais, sem que isso degringole numa desordem.


A missão do Estado liberal, bem se vê, beira o impossível: manter a ordem num ambiente social caótico e desagregador!


Justamente porque inviável seria organizar uma sociedade extremamente individualista, desordenada porque sem rumo definido, desagregada pelos vários blocos de interesses diversos que se formaram em seu interior, muitos dos quais artificialmente criados para cindir as pessoas em antagonismos bobos, é que Michael Sandel parece querer tornar a fazer com que o Estado busque algo que não seja a mera mediação entre os interesses individuais, aspire a que o Estado tenha uma verdadeira ordem social, bens e objetivos que sejam comuns a todos os membros da pólis.



Ainda que a ordem social que muitos gostariam de ter não seja a mesma de Sandel, pelo menos ele se dispôs a discutir isso sem subterfúgios retóricos, como aqueles usados por Barroso.


Para ficar no exemplo mais marcante da conversa entre os dois: o aborto!


Barroso colocou que é pessoalmente contra o aborto, mas que seria uma injustiça criminalizá-lo, como ocorre no Brasil, pois o Estado não poderia impor a moral dominante àqueles que dela discordam, de modo que caberia ao Estado simplesmente permitir que quem quisesse fazê-lo o fizesse livremente.


Por seu turno, Sandel defendeu de viva voz que, na discussão judicial do aborto, dever-se-ia analisar quando a vida tem início: se no momento da concepção, como defende a Igreja Católica, ou em algum átimo depois dela.


Claro que o argumento de Barroso, sob a roupagem liberal de John Rawls, não passa de um subterfúgio retórico apto a permitir que tal prática venha a ser não só aceita mas incentivada pelo Estado, sem que a discussão de fundo seja de fato enfrentada. Enquanto Sandel corajosamente se dispõe a encarar o problema em sua inteireza para saber se a prática do aborto constitui ou não o assassinato de um ser vivo, pois essa é realmente a questão a ser debatida.


Sandel defende que a vida não começa na concepção, não explicando quando ela tem início; mas só a valentia que tem de não ocultar o problema debaixo do tapete do bom-mocismo do Estado liberal já é algo que deve ser louvado.


E não é o aborto em si mesmo considerado sobre o que escrevo. Limito-me a felicitar essa mudança no pensamento moderno, uma verdadeira ruptura nele, alteração por meio da qual a busca pelo bem comum parece retornar à discussão dos que realmente pensam sobre a Justiça; pois o confronto franco de ideias, sem peias nem melindres, permitirá que a sociedade se unifique em torno daquilo que realmente considera bom, una-se sobre objetivos que haveriam de ser os mesmos de todos os que querem compartilhar não só uma história comum, mas também o mesmo futuro juntos.