sexta-feira, 12 de junho de 2020

Sobre terraplanismo constitucional.

Em recente decisão na qual indeferiu a petição inicial do Mandado de Injunção 7.311/DF, ajuizado para que “o Supremo Tribunal Federal explicitasse as normas para convocação das Forças Armadas, por qualquer um dos poderes”, em caso de risco à Democracia, o Min. Luís Roberto Barroso denominou a tese contrária à por ele próprio desposada de terraplanismo constitucional. Disse mais. Esclareceu serem intérpretes heterodoxos da Constituição aqueles que defendem a possibilidade de intervenção pontual das Forças Armadas quando haja usurpação de um dos três poderes por qualquer dos outros. E por óbvio o Ministro Barroso se referia ao prof. Ives Gandra Martins que, em artigo citado na primeira nota de rodapé da decisão do MI 7.311, defendeu e ainda defende a possibilidade de intervenção pontual das Forças Armadas para o restabelecimento da ordem democrática em razão da usurpação de competência de qualquer dos poderes por outro.

A questão agora não é saber quem tem razão no tema discutido no tal Mandado de Injunção, mas mostrar onde é que realmente estão os terraplanistas. Se dentro ou fora do Supremo Tribunal Federal, uma vez que a interpretação heterodoxa da Constituição parece ser a marca registrada de sua atual composição.

Antes disso, só cumpre anotar que seria mesmo impossível imaginar, no horizonte atual, que o Supremo Tribunal Federal reconhecesse que diuturnamente age contra a Constituição, colocando a democracia em risco ao usurpar a competência do Poder Executivo, depois de havê-la retirado do Poder Legislativo (sem qualquer reclamação desse Poder, diga-se en passant). Com efeito, seria exigir do Supremo Tribunal Federal uma autocrítica para a qual parece que seus membros atuais não estão prontos, haja vista que pensam que qualquer juízo depreciativo sobre as decisões deles constitui na verdade uma ofensa à democracia. Ou seja: cada um deles se considera portador da vontade popular ou guia do povo, quando o que decide contraria a manifesta vontade desses coitados que precisam ser iluminados por inteligências superiores.

E na própria decisão em que “nega seguimento ao mandado de injunção”, o Ministro Barroso deixa isso claro ao pontuar:

“Nessa medida, compete ao Poder Executivo, a título ilustrativo, o governo do país, o comando das Forças Armadas (conforme as balizas constitucionais e legais) e a indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Compete ao Legislativo aprovar ou rejeitar as leis, julgar impeachments contra o Chefe do Executivo ou contra os membros do STF e aprovar o orçamento que condiciona a remuneração e o funcionamento de todos os membros de poderes e de seus servidores. Compete ao Supremo Tribunal Federal e ao Poder Judiciário, de modo geral, o controle da constitucionalidade e da legalidade dos atos praticados pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo. Eventuais excessos de um Poder são corrigíveis pelos mecanismos constitucionais existentes.”

Em palavras diferentes: compete ao Supremo Tribunal Federal e ao Poder Judiciário, de modo geral, o controle da constitucionalidade e da legalidade dos atos praticados pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo; mas como o Supremo Tribunal Federal faz o que quer da Constituição e das leis, sem se submeter a qualquer correção, porque, afora o art. 142 da Constituição Federal, parece não haver outro mecanismo capaz de permitir o controle de suas decisões, por mais estapafúrdias que sejam, a Constituição e as leis passam a ser o que o Supremo Tribunal Federal diz que elas são.

E eis aqui o ponto que realmente interessa!

Só para dar alguns exemplos do que realmente foram decisões heterodoxas: (i) a equiparação entre a denominada união estável homoafetiva e a união estável tradicional, aquela entre um homem e uma mulher prevista pelo art. 226, § 3º, da Constituição Federal e passível de ser convertida em casamento (ADPF 132/RJ e ADI 4.277. Relator: Min. Carlos Ayres Britto. DJe 14.10.2011); (ii) a liberação do aborto no primeiro trimestre da gestação, por meio de interpretação conforme à Constituição dos arts. 124 e 126 do Código Penal (HC 124.306/RJ. Relator: Min. Marco Aurélio. Redator do acórdão: Min. Luís Roberto Barroso. DUe 17.03.2017); (iii) a decisão por meio da qual, reescrevendo o art. 102, inc. I, alínea b, da Constituição Federal, o STF limitou o foro constitucionalmente conferido aos deputados federais e senadores exclusivamente para os crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas (AP 937/RJ. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. DJe 11.12.2018). E os exemplos poderiam ser colhidos aos borbotões, mas evitar-se-ão as últimas decisões porque não são necessárias novas polêmicas sobre elas. No entanto, são esses exemplos agora citados suficientes para provar, não que as teses adotadas pelo Supremo Tribunal Federal em cada um deles estejam certas ou erradas, mas que esse Tribunal se transformou num poder constituinte permanente, para o qual não há limites semânticos, sintáticos ou pragmáticos quando se põe a interpretar a Constituição, as leis ou seu próprio regimento. O STF de hoje faz o que quer, ao seu bel-talã!

Ser um terraplanista constitucional, neste triste contexto por que passamos, não parece algo tão ruim assim. Afinal, se o Supremo Tribunal Federal vem andando há tempos na contramão da democracia, reescrevendo a Constituição de acordo com as ideologias de seus membros, heterodoxas não são as placas que o estão avisando disso.