Excelentíssimo Senhor Juiz de
Direito da XX Vara do Juizado Especial de XXX (XX)
Refere-se
aos autos nº XXXX
Fulano
de Tal, devidamente qualificado, vem, mui respeitosamente, por
intermédio do advogado que esta subscreve, defender-se das acusações feitas por
Cicrano de Oliveira, aduzindo, para tanto, o seguinte:
Sumário
I. Síntese necessária; II. As acusações; III. A inexistência
de injúria; a) Atipicidade; b) Direito à critica; c) Dois pesos e duas medidas;
IV. Conclusão.
I. Síntese necessária
1. O querelante, professor dos cursos de História e Filosofia da
Universidade XXX, que atualmente doutora-se em Roma, veiculou vídeo de uma de
suas aulas. Note-se bem: foi o próprio querelante quem deu a conhecer suas
opiniões,
tornando-as públicas com a exposição delas pelo Youtube.
2. Ao analisar o conteúdo dos comentários feitos pelo querelante e
por ele mesmo inseridos na rede mundial de computadores por um de seus canais
mais acessados, percebendo que carecem de fundamento não só histórico como
filosófico, o querelado elaborou série de artigos nos quais esclarece quais são
os equívocos expostos ao mundo pelo voluntarismo exibicionista típico de quem não
aceita ser contrariado.
3. Observe-se que o querelado só foi além, não se limitando a poucos
e didáticos artigos, em razão das advertências ameaçadoras feitas pelo próprio
querelante, segundo as quais levaria a questão a juízo pelo simples gosto de
cercear a liberdade daqueles que pensam de modo diferente.
Por não crer que o Poder Judiciário
limitaria a liberdade de manifestar suas próprias ideias religiosas e
filosóficas – direito que lhe é assegurado pelo art. 5º, incisos VIII e IX, da
Constituição Federal –, o querelado deu continuidade à publicação de seus
estudos, com os quais demonstra por a mais
b que as opiniões do querelante podem
amoldar-se a qualquer perfil, mas não se adéquam à doutrina da Igreja Católica.
4. Eis algo nos artigos e opiniões que se entrechocam que merece
realce, pois a característica do assunto em debate justifica a linguagem usada
pelo querelado: são assuntos que guardam pertinência à Igreja Católica, aos fundamentos
da própria Catholicae Fidei.
5. E isso é importante destacar porque palavras como heresia e
cisma, por
exemplo, têm sentido técnico dentro da Igreja Católica, a despeito de
professores tolerantes como o querelante quererem dar-lhes cores mais róseas
num mundo em que a verdade parece liquefazer-se a cada segundo.
6. Em síntese: trata-se, o processo em tela, de acusação de injúria
e difamação. Crimes que teriam sido praticados pelo querelado em discussão na
qual estavam em jogo questões relacionadas à fé professada por duas pessoas que
se dizem seguidoras da Igreja Católica.
7. Uma delas, professor da Universidade e portador do título de
mestre, assistido pelo Núcleo de Prática Jurídica que haveria de atender as
pessoas necessitadas, que se
gaba de suas bandeiras socialistas em sala de aula e fora dela, ainda
que isso contrarie todo o
Magistério da Igreja. De
outro lado, um pai de família com três filhos pequenos, trabalhador, que faz da
sua vida humilde, mas sustentada pelo suor do próprio rosto, um apostolado do
catolicismo tal qual praticado há dois mil anos.
II. As acusações
8. O querelado é acusado de, no meio de seus artigos, fazer afirmações
como as seguintes:
“Atendendo aos clamores de
acadêmicos estarrecidos pelas heresias de um mestre de fábulas, dedicaremos uma
série de artigos nos quais denunciaremos e refutaremos os erros teológicos e
históricos de um professor de Filosofia, que, mesmo atuando em uma Universidade
Católica, não manifesta [...]
“Em outros tempos, tivemos a
oportunidade de denunciar pessoalmente ao Arcebispo local as barbaridades
heréticas desse mestre de mentiras. [...] O herege continuou a espalhar
livremente seus erros aos futuros padres da Arquidiocese de XXX. O lobo foi
poupado pelo epíscopo que deveria, a todo custo, proteger as ovelhas.
“Nele, o professor-socialista,
que se apresenta como XXX, afirma categoricamente [...]”.
9. É claro que não há aí qualquer coisa que se amolde ao tipo penal
da difamação, uma vez que, como parece ser do conhecimento do próprio
demandante, a difamação se dá com a imputação a outrem da prática de fatos
infamantes à sua honra.
10. E o querelado não imputou ao querelante qualquer fato que o
difame. Afirmou, sim, que as teses expostas pelo querelante são heréticas e
cismáticas, o que de fato são se
analisadas à luz da Doutrina Católica. Em razão disso, porque o querelante se diz
católico mas contraria frontalmente à Verdade revelada pelo Magistério da
Igreja – e quem é católico tem de submeter-se ao Magistério – não
seria tecnicamente incorreto chamá-lo também mentiroso, pois suas afirmações
contrariam verdades de fé.
11. Eis a análise que se fará a seguir.
III. A inexistência de injúria
a) Atipicidade
12. Em primeiro lugar, cumpre recordar que o tipo penal da injúria
exige o dolo, de tal arte que as palavras proferidas numa discussão não
caracterizam o delito, como bem lembrado pelo Tribunal de Justiça do Distrito
Federal, em julgamento
no qual assentou:
“A injúria proferida no calor da discussão não caracteriza o crime
previsto no artigo 140, § 3º, do Código Penal (injúria racial), pois ausente o
elemento subjetivo específico do tipo, qual seja, magoar e ofender.”
13. No caso dos autos, pelas próprias palavras saídas da pena do querelante,
com as quais chama baboseiras
as lições que lhe foram dadas pelo querelado (fls. 13 e 14, p. ex.), percebe-se
que as discussões eram acaloradas. Tanto de um lado como de outro. Como, aliás,
devem ser os debates de ideias.
14. É de bom-tom realçar também que o querelante é o mesmo que
chamou imbecil ao Papa Bento
XVI (fl. 16)!
15. Um pouco de perplexidade toma conta do ambiente quando se
comparam os comentários do querelante sobre o Papa Bento XVI com aqueles feitos
pelo querelado. Ou seja: para o querelante, chamar o Papa Bento XVI de imbecil
não é crime, mas ser chamado de mentiroso o é! Qual é o critério?
16. Mais importante até do que chamar Papa Bento XVI de imbecil,
dentro da Igreja Católica, é se recusar a aceitá-lo como pastor da Igreja
universal.
Houve Papas que não eram santos nem sábios. Aliás, alguns até longe passaram da
santidade. Mas a aceitação da jurisdição universal do Papa é uma regra
impositiva ao católico, pois, não aceitá-la caracteriza cisma, e foi o próprio
querelado que o explicou com proficiência, sustentando-se na doutrina de São
Tomás de Aquino. Noutras palavras: cismático
é o termo técnico para designar quem renega
a autoridade do Bispo de Roma, como é o caso do querelante, que se recusava a
aceitar Bento XVI como sucessor de São Pedro!
17. Chamá-lo de mentiroso e herege poderia ser injurioso, se o
querelante, dizendo-se católico, não renegasse
uma verdade de fé; qual seja: a da transubstanciação do pão no Corpo de Cristo
que ocorre no sacrifício da Missa.
18. Trata-se de verdade revelada por Deus, de acordo com a Bíblia e o
Magistério da Igreja, que o pão se transforma em Corpo de Cristo durante a
Missa! Verdade de fé!
19. Quem, dizendo-se
católico, nega uma verdade de
fé infelizmente só pode ser chamado mentiroso e herege, pois,
a despeito de serem termos pesados, são os únicos que retratam a situação que
se quer expor com a franqueza
que o debate intelectual exige. E, nos debates intelectuais, não há espaço para
tergiversações como as feitas nos processos judiciais, em que, ao se deparar
com uma mentira, as pessoas, talvez porque politicamente corretas, digam que o
mentiroso faltou com a verdade para não dizer que mentiu.
20. Noutro versar: a despeito de duras, dentro do contexto em que
inseridas,
as palavras do querelado serviram para desnudar as verdadeiras opiniões
manifestadas com aspereza pelo querelante, que em
absolutamente nada se aproximam do Magistério da Igreja cuja fé assegura
professar.
21. Só que o que mais importa para o caso é o seguinte: as críticas
do querelado inserem-se num contexto em que a liberdade é a regra, porque
feitas quando debatidos temas filosóficos/religiosos.
b) Direito à crítica
22. Relembre-se que toda a celeuma narrada agora teve início quando
o querelante postou no Youtube aula
na qual desdenha a Fé Católica, questiona verdades com as quais o povo católico
sustenta as próprias vidas, faz pouco dos dogmas que alicerçam a Igreja.
23. O querelante então deliberadamente tornou públicas opiniões
suas que desbordam a Doutrina da Igreja, que com ela se chocam frontalmente,
mas não gostaria de ser criticado? O querelante quereria que suas ideias
extravagantes
fossem acolhidas sem qualquer contestação?
24. Todos têm o direito de discordar.
Inclusive do Papa, como bem demonstra o querelante ao alcunhá-lo imbecil, pois,
ainda que dentro da Igreja Católica a liberdade não seja tão grande, no
Brasil há a liberdade constitucionalmente garantida para a crítica (artística,
filosófica e etc.).
25. Imagine se os jogadores de futebol processassem, exempli gratia, os comentaristas da Sportv que os chamassem de pés-duros,
que tirassem sarro quando os chutes fossem para longe do gol, ou quando
começassem a rir de alguma jogada mais inusitada. Tudo no mundo viraria
processo.
26. E por que qualquer crítica que se faça não se transforma em
processo?
27. Porque a crítica é inerente a uma sociedade plural e
democrática. Da mesma forma que o querelante pode imotivadamente chamar o Papa
Bento XVI de imbecil, também pode ser alcunhado mentiroso, ainda mais se houver
motivo para tanto.
28. Esses ataques, quando feitos dentro do exercício da crítica,
hão de ser tolerados, pois, caso contrário, instalar-se-á o reino do terror, em
que as pessoas jamais diriam o que pensam nem o que professam com medo de
sofrer represálias judiciais. Aliás, parece que o querelante, insensível quando
ataca seus virtuais adversários, mas sensibilíssimo quando é atacado, conta com
a anuência do Poder Judiciário para calar quem dele discorda.
29. Cumpre recordar que, se levada a termo for a intenção penal do
querelante, o próprio Jesus Cristo haveria de ser responsabilizado também pelas
duras críticas tecidas publicamente contra os fariseus, haja vista que os
chamou de hipócritas e sepulcros caiados. Mas se até sob o império romano
existia a liberdade de crítica, não haverá hoje no Brasil?
c) Dois pesos e duas medidas
30. Aqui não se quer justificar um erro com outro. Não se quer
afirmar que, porque o querelante errou ao chamar o Papa Bento de imbecil, equívoco
que não seria punido por evidentes razões, ter-se-ia de perdoar o equívoco do
querelado, como se um erro justificasse outro.
31. Não é isso. O que se quer dizer é que no ambiente em que as
críticas foram feitas é normal certa aspereza nas colocações. Aspereza, aliás,
vista com mais frequência nas afirmações do querelante do que nas do querelado,
como uma simples passada d’olhos nos autos poderá comprovar.
32. Portanto, porque esse é o comportamento normal dos contendores
em recorrentes discussões filosóficas e/ou religiosas e/ou políticas, como
demonstram as próprias invectivas do querelante contra seus adversários
ideológicos,
não há como acolher o pedido condenatório por ele feito, uma vez que isso lhe
daria o monopólio da crítica.
33. Quer-se aqui, já que todos os envolvidos se autodenominam
católicos, a aplicação do princípio segundo o qual a régua com que medirdes
será a mesma com a qual serás medido.
34. Não há como dar ao querelante o que ele quer, sem com isso
ferir de morte a livre manifestação do pensamento.
IV. Conclusão
35. Em razão do exposto, porque atípicas as condutas do querelado,
ele quer sejam os pedidos condenatórios julgados totalmente improcedentes.
Campo Grande (MS), 26 de março de
2015.
TIAGO BANA FRANCO
OAB/MS 9.454
“Explicando a
democracia. Embora o governador Azambuja tenha concordado com a nomeação da
sobrinha de um deputado para o TCE, e tenha negado a jornada de 30 hs para
enfermeiros e outras coisas a mais, ninguém que não votou nele está pedindo a
sua saída do governo ou com camisetas imbecis,
eu não votei nele. E por um motivo muito simples, a maioria escolheu ele é deve
ser respeitada. O que devemos fazer é fiscalizar e mesmo ajudar para que tenha
um bom governo. Porque se ele for mal, quem perde somos nós. Isso é democracia.”