sábado, 14 de novembro de 2015

O homem sem peru e a filosofia moderna

Não sei se vivemos dias mais terríveis do que aqueles que se passaram, mas sinto algo estranho no ar. É a tentativa de transmudar a realidade por meio do discurso. Hoje, por exemplo, quer-se impor a obrigação de aceitar homem no banheiro feminino. Bom, mas o fulano tem um peru, e não uma quequeca! E não interessa como faça sexo. Ele tem peru! E quem tem peru é homem, quer sinta coceirinha aqui ou acolá.
Por que então as pessoas aceitariam no banheiro feminino alguém com peru?
A realidade não importa mais.
Se o fulano com peru acha que é mulher porque gosta do que as mulheres habitualmente gostam, ele tem o direito de frequentar o banheiro feminino.
Só que se esquece que as mulheres gostam do que ele gosta porque naturalmente são assim.
Há exceções?
Claro que há.
Só que são poucas, porque se muitas fossem, provavelmente nem eu estaria aqui nem você aí.
O problema todo é que a questão posta nessas porcas e mal ajambradas palavras tem origem numa maneira de ver a vida, origina-se duma filosofia. Nem muito nova nem muito antiga. Inicia-se ali no fim do medievo.
Com a ascensão dos filósofos modernos, primeiro se esfacelam as essências, uma vez que não teríamos acesso a elas, porque só veríamos (e cooptaríamos) as aparências das coisas, para depois se fechar no próprio eu duvidando de tudo o que esteja fora do eu mesmo.
O que se tem, então?
Uma fábrica de loucos!
Se eu duvido de tudo e não sei se o animal que vejo logo ali é um gatinho ou um leão, não sei se corro ou acaricio, é claro que estou com um pé na insanidade e outro na casca de banana.
Mas qualquer homem normal percebe que um gato é um gato e não um leão, porque sabe que na maior parte do tempo pode confiar naquilo que extrai do mundo exterior.
E aí é que entra o Estado contemporâneo!
Como nem ao homem-massa os filósofos conseguiram impor tamanhas maluquices, o Estado tomou para si a função de fazê-lo, obrigando as pessoas a aceitar a fantasia como realidade, o discurso se sobrepondo ao real.
E eis que daqui a pouco teremos homens nos banheiros femininos! Pessoas brancas se (auto)declarando negras! Negros e brancos fantasiados de índios!
Tudo para que fiquemos loucos, com a destruição do que vemos, ouvimos e sentimos, para que prevaleça o discurso de quem ocupa o Poder.


Ps. Um homem sem peru é um só um homem sem peru, e não uma mulher.

sábado, 24 de outubro de 2015

Steinhardt e Quixote

É claro que a ideia não é minha, mas de N. Steinhardt, que, em seu Diário da Felicidade, a trouxe e a explicou, mesclando-a com sua incrível biografia. Só que de tão valiosa, resolvi sintetizá-la, evitando misturá-la com minha porca vida, pois desta são poucas coisas que merecem registro; e não porque sejam boas nem extremamente más, mas simplesmente porque sensaborona.
Falo do trecho em que Steinhardt relembra que Dom Quixote, ao ver um bando de mequetrefes numa taverna, conversa com eles como se fossem verdadeiros aristocratas, pessoas sumamente importantes, e que a taverna não seria a espelunca que aparentava, mas, ao contrário, verdadeiro castelo, para explicar em seguida que essa visão quixotesca do homem é a mesma de Deus, como se Deus nos visse a todos como aristocratas, e o mundo que fez, como um castelo.
E de fato Deus nos vê importantíssimos, barões, condes, duques e reis, ainda que porventura trajemos andrajos e trapos, porque, como Ele nos fez à Sua imagem e semelhança, como Ele próprio nos disse para sermos deuses, perfeitos, nós temos a potência de realizar-nos, realizando o próprio projeto divino que encarnamos, projeto único que individualmente a nós mesmos compete pôr em andamento e fazê-lo chegar a bom termo.
Se nós estamos sujos, imundos com nossos pecados, e não queremos limpar-nos, abandonando a ideia de que poderemos ser perfeitos como (e porque) Deus é perfeito, é em razão de termos perdido a capacidade de nos olharmos como filhos de Deus, como verdadeiros aristocratas de um mundo que está por vir, como pessoas destinadas aos céus, como filhos que daqui a pouco, num breve e curtíssimo espaço de tempo, verão a Deus face a face; ocasião em que os que se portam como aristocratas serão recebidos no castelo do Senhor, pois amigos Seus, mas os que se contentam com suas próprias misérias serão arremessados ao castigo eterno, onde haverá choro e ranger de dentes.
Quixote não seria um simples maluco, pois. Ao revés. Mostra-se como a personificação do verdadeiro cristão, que vê seus irmãos com a nobreza que cada um deles tem, e eis aí o sinal distintivo do aristocrata, porque todos são filhos do mesmo Deus e amados por Ele, porque irmãos, ainda que relapsos, mesmo que pródigos, posto que perdidos por perderem-se achando que o mundo não é o verdadeiro castelo que é; lugar que só consegue ser visto por Quixotes ou Príncipes Míchikins, personagem quixotesco de Dostoievski n’O Idiota.


sexta-feira, 26 de junho de 2015

Tutte le estrade portano a Havana

1. Vivem-se dias curiosos. Hoje, todos os caminhos levam a Havana, como outrora levaram a Roma. Há um movimento contínuo tendente a colocar sempre uma pitada de solidariedade nas relações jurídicas. Na própria Constituição Federal encontra-se um dos objetivos da ordem jurídica brasileira atual: construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3, inc. I), por meio da erradicação da pobreza e das desigualdades sociais (art. 3, inc. III).

2. O problema todo, como bem destacou Frederic Bastiat[1] em meados do século XIX, é o seguinte: ou a ordem jurídica é justa ou é solidária, uma vez que a solidariedade imposta pelo Estado necessariamente implica a expropriação do patrimônio de quem tem e sua transferência a quem não o tem[2]; transferência sobre a qual o próprio Estado cobra corretagem altíssima para realizá-la, azeitando com esse dinheiro a máquina burocrática que funcionará a cada dia mais e melhor, ao fim e ao cabo para que haja novas transferências patrimoniais, até que não exista quem detenha patrimônio a ser expropriado – situação que se não amolda ao conceito de justiça de maneira alguma, mas adéqua-se à vaga conotação que tem o substantivo justiça acompanhado do adjetivo social, como apregoado há cinquenta anos ou mais na velha e outrora linda capital cubana.

3. Percebe-se claramente que, por meio de ideias sempre relacionadas à solidariedade e ao bem comum, destroem-se dia após dia a segurança dos brasileiros e daqueles que, de uma forma ou outra, relacionam-se com o Brasil. Um exemplo: o conceito indeterminado de função social da propriedade hoje serve para justificar a invasão e a destruição de bens imóveis[3]; os quais, de acordo com os próprios invasores, haveriam mesmo de ser invadidos, porque não cumpririam sua função social, num evidente raciocínio circular que não esclarece o que se quer dizer quando se refere à função social da propriedade[4].

4. Outro exemplo que não haveria de ficar de fora é o princípio que atualmente rege – também, mas não só – o imposto de renda, segundo o qual tal exação haverá de ser progressiva (CF, art. 153, parágrafo segundo, inciso I). O que isso significa? Que o Estado se apropriará para si da parcela que ele próprio considerar excessiva na renda das pessoas, com alíquotas que crescem à medida que aumenta esse excesso, sob o pretexto de que o distribuirá aos desfavorecidos, tornando assim a sociedade menos desigual e mais solidária. Ocorre que os próprios Karl Marx e Friedrich Engels[5] escreveram que um dos caminhos para a implantação do socialismo seria a tributação progressiva!

Se os pais do que jocosamente se denomina socialismo científico disseram que a implantação de tal mal haveria de ser feita por meio de impostos progressivos, quem poderá deles discordar?

5. E é assim que, passo a passo, o ordenamento jurídico brasileiro segue sua trilha em direção ao agigantamento estatal, que leva automaticamente ao inchaço da máquina pública e à crescente concentração dos meios de produção nas mãos burocráticas de um ou outro chefe de repartição. E a concentração dos poderes político e econômico nas mesmas pessoas, que é o que naturalmente ocorre quando o Estado intervém na atividade empresarial, exercendo-a ou dirigindo-a (sempre em favor de seus apaniguados, claro!), é a característica mais marcante de qualquer regime totalitário.

6. Ocorre que, por incrível que pareça, o problema maior não é esse; mas a maneira com a qual o Poder Judiciário vem imiscuindo-se nas relações jurídicas, às mais das vezes sem qualquer respaldo legal, para atribuir às partes que considera bafejadas pela sorte obrigações que não existem, deveres que essas partes não têm, criando para elas regras de suas próprias cabeças, a fim de, com o dinheiro delas, tornar o mundo um lugar mais legal para se viver.

7. Eis aí o fenômeno do ativismo judicial, o qual trouxe, traz e trará infindáveis problemas à sociedade brasileira, que vem caindo no poço sem fundo da insegurança jurídica[6].

8. E é nesse contexto, em que os juízes não se contentam em simplesmente cumprir as leis, mas, na busca insana de tonarem-se protagonistas de um novo e solidário mundo, tentam de todos os modos destruir a última coisa que ainda resta do que seria o esboço brasileiro de uma economia de mercado: a responsabilidade limitada das sociedades empresariais que para si próprias escolheram esse regime[7][8].




[1] La ley. Madri: Alianza Editorial, 2005.
[2] “Aquí choco con la preocupación más popular de nuestra época. Se desea, no sólo que la Ley sea justa, sino que sea también filantrópica. No basta con que garantice a todo ciudadano el libre e inofensivo ejercicio de sus facultades aplicadas a su desenvolvimiento físico, intelectual y moral; sino que se le exige que derrame directamente el bienestar, la moralidad y la instrucción sobre el país. Éste es el lado agradable del socialismo.
“Pero, lo repito, estas dos tareas que se quiere atribuir a la Ley se contradicen; es menester optar entre una y otra; el ciudadano no puede ser y no ser libre al mismo tiempo. Monsieur de Lamartine me escribía en cierta ocasión: ‘Vuestra doctrina no es más que la mitad de mi programa; vos os quedáis en la libertad, y yo llego hasta la fraternidad’. Y yo le contesté: ‘La segunda mitad de vuestro programa destruirá la primera’. Y en efecto, yo no puedo en modo alguno separar la palabra fraternidad de la palabra voluntaria. No puedo concebir la fraternidad obligada por la ley, sin que quede destruida por la ley la libertad, y hollada por la ley la justicia.” (BASTIAT, Frederic. Ob. cit., p. 75).
[3] Não é demais lembrar, num tempo em que a própria Igreja Católica parece apoiar grupos paramilitares travestidos de movimentos sociais, as palavras do Papa Leão XIII:
“Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer por todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular.” (Encíclica Rerum Novarum, parágrafo 7º. Texto disponível no seguinte endereço eletrônico: http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html).
[4] À balha, traz-se o discurso pronunciado por Carlos Lacerda diante da Comissão de Constituição e Justiça em maio de 1957, cujo trecho que interessa segue transcrito:
“Venho a esta comissão como testemunha de um tempo de subversão de valores, na qual – como na sátira de George Orwell, fala-se em liberdade para matá-la, em democracia para destruí-la, em legalidade para negá-la na sua própria essência. As palavras adquirem um sentido oposto ao seu significado; e os homens afetam sentimentos nobres para justificar, na perplexidade das ideias, a política dos mais baixos instintos.”
[5] “Em 1848, Karl Marx e Engels propuseram abertamente a intensa progressão do imposto de renda como uma das medidas para o proletariado usar, após o primeiro estágio da revolução, para garantir a supremacia política, tomar todo o capital da burguesia e centralizar os instrumentos de produção nas mãos do estado. John Stuart Mill descreveu a progressão do imposto como pura forma de roubo. Ao que parece, estava correto.” (CONSTANTINO, Rodrigo. Economia do indivíduo – o legado da Escola Austríaca. Texto disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.mises.org.br/files/literature/Economia%20do%20Individuo%20-%20WEB.pdf).
[6] FRANCO, Tiago Bana. Ativismo judicial: a desarrazoada busca do razoável. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, v. 16, p. 59-86, 2013.
[7] Não se desconhece a existência de sociedades empresariais em que os sócios respondem com seus patrimônios pessoais pelas dívidas sociais, como é o caso, por exemplo, das sociedades simples (CC, art. 997 e seguintes). Só que não é esse o foco do problema a ser abordado aqui, uma vez que se tratará com exclusividade das empresas constituídas de modo que a responsabilidade dos seus sócios limite-se ao capital social.
[8] SALAMA, Bruno Meyerhof. O fim da responsabilidade limitada no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2014.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Caminhos para Roma - Carpeaux

Caminhos para Roma, de Otto Maria Carpeaux, é um primor. Nele, o autor traça os trilhos por que andou até enamorar-se da mensagem de Cristo tal qual guardada pela tradição apostólica da Igreja Católica. É um desfile de argumentos que machucaria qualquer um que desavisadamente do livro se aproximasse.

O que mais me espanta, no entanto, é a relação que o autor faz entre a decadência da mensagem cristã - diluída pela Reforma e truncada pelo iluminismo da Franco-Maçonaria, para depois ser quase destruída pelo Socialismo -, e a queda absurda da alta cultura no Ocidente.


Trata-se certamente da razão de ser da obra, uma vez que Carpeaux não deixa dúvida: a alta cultura acabou porque a Igreja decaiu, pois só se pode falar em alta cultura quando o artista tem sobre si os eternos olhos de Deus. E não de um Deus individual, como o dos protestantes; nem de um Deus amorfo, como o dos Maçons; muito menos de um Deus inexistente, como o dos Socialistas; mas, sim, de um Deus que é aquele que é, ontem, hoje e sempre.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Petição interessante sobre suposto crime de injúria, o qual teria sido praticado em discussão pela internet.


Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito da XX Vara do Juizado Especial de XXX (XX)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Refere-se aos autos nº XXXX

 

 

 

 

 

 

 

 

Fulano de Tal, devidamente qualificado, vem, mui respeitosamente, por intermédio do advogado que esta subscreve, defender-se das acusações feitas por Cicrano de Oliveira, aduzindo, para tanto, o seguinte:

 

Sumário

 

I. Síntese necessária; II. As acusações; III. A inexistência de injúria; a) Atipicidade; b) Direito à critica; c) Dois pesos e duas medidas; IV. Conclusão.

 

I. Síntese necessária

 

1. O querelante, professor dos cursos de História e Filosofia da Universidade XXX, que atualmente doutora-se em Roma, veiculou vídeo de uma de suas aulas. Note-se bem: foi o próprio querelante quem deu a conhecer suas opiniões[1], tornando-as públicas com a exposição delas pelo Youtube.
 
2. Ao analisar o conteúdo dos comentários feitos pelo querelante e por ele mesmo inseridos na rede mundial de computadores por um de seus canais mais acessados, percebendo que carecem de fundamento não só histórico como filosófico, o querelado elaborou série de artigos nos quais esclarece quais são os equívocos expostos ao mundo pelo voluntarismo exibicionista típico de quem não aceita ser contrariado.
 
3. Observe-se que o querelado só foi além, não se limitando a poucos e didáticos artigos, em razão das advertências ameaçadoras feitas pelo próprio querelante, segundo as quais levaria a questão a juízo pelo simples gosto de cercear a liberdade daqueles que pensam de modo diferente[2].
Por não crer que o Poder Judiciário limitaria a liberdade de manifestar suas próprias ideias religiosas e filosóficas – direito que lhe é assegurado pelo art. 5º, incisos VIII e IX, da Constituição Federal –, o querelado deu continuidade à publicação de seus estudos, com os quais demonstra por a mais b que as opiniões do querelante podem amoldar-se a qualquer perfil, mas não se adéquam à doutrina da Igreja Católica.
 
4. Eis algo nos artigos e opiniões que se entrechocam que merece realce, pois a característica do assunto em debate justifica a linguagem usada pelo querelado: são assuntos que guardam pertinência à Igreja Católica, aos fundamentos da própria Catholicae Fidei.
 
5. E isso é importante destacar porque palavras como heresia e cisma[3], por exemplo, têm sentido técnico dentro da Igreja Católica, a despeito de professores tolerantes como o querelante quererem dar-lhes cores mais róseas num mundo em que a verdade parece liquefazer-se a cada segundo.
 
6. Em síntese: trata-se, o processo em tela, de acusação de injúria e difamação. Crimes que teriam sido praticados pelo querelado em discussão na qual estavam em jogo questões relacionadas à fé professada por duas pessoas que se dizem seguidoras da Igreja Católica.
 
7. Uma delas, professor da Universidade e portador do título de mestre, assistido pelo Núcleo de Prática Jurídica que haveria de atender as pessoas necessitadas[4], que se gaba de suas bandeiras socialistas em sala de aula e fora dela[5], ainda que isso contrarie todo o Magistério da Igreja[6]. De outro lado, um pai de família com três filhos pequenos, trabalhador, que faz da sua vida humilde, mas sustentada pelo suor do próprio rosto, um apostolado do catolicismo tal qual praticado há dois mil anos.
 

II. As acusações

 

8. O querelado é acusado de, no meio de seus artigos, fazer afirmações como as seguintes:
 
“Atendendo aos clamores de acadêmicos estarrecidos pelas heresias de um mestre de fábulas, dedicaremos uma série de artigos nos quais denunciaremos e refutaremos os erros teológicos e históricos de um professor de Filosofia, que, mesmo atuando em uma Universidade Católica, não manifesta [...]
“Em outros tempos, tivemos a oportunidade de denunciar pessoalmente ao Arcebispo local as barbaridades heréticas desse mestre de mentiras. [...] O herege continuou a espalhar livremente seus erros aos futuros padres da Arquidiocese de XXX. O lobo foi poupado pelo epíscopo que deveria, a todo custo, proteger as ovelhas.
“Nele, o professor-socialista, que se apresenta como XXX, afirma categoricamente [...]”.
 
9. É claro que não há aí qualquer coisa que se amolde ao tipo penal da difamação, uma vez que, como parece ser do conhecimento do próprio demandante, a difamação se dá com a imputação a outrem da prática de fatos infamantes à sua honra.
 
10. E o querelado não imputou ao querelante qualquer fato que o difame. Afirmou, sim, que as teses expostas pelo querelante são heréticas e cismáticas, o que de fato são se analisadas à luz da Doutrina Católica. Em razão disso, porque o querelante se diz católico mas contraria frontalmente à Verdade revelada pelo Magistério da Igreja – e quem é católico tem de submeter-se ao Magistério[7] – não seria tecnicamente incorreto chamá-lo também mentiroso, pois suas afirmações contrariam verdades de .
 
11. Eis a análise que se fará a seguir.
 

III. A inexistência de injúria

a) Atipicidade

 
12. Em primeiro lugar, cumpre recordar que o tipo penal da injúria exige o dolo, de tal arte que as palavras proferidas numa discussão não caracterizam o delito, como bem lembrado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal[8], em julgamento no qual assentou:
 
“A injúria proferida no calor da discussão não caracteriza o crime previsto no artigo 140, § 3º, do Código Penal (injúria racial), pois ausente o elemento subjetivo específico do tipo, qual seja, magoar e ofender.”
 
13. No caso dos autos, pelas próprias palavras saídas da pena do querelante, com as quais chama baboseiras as lições que lhe foram dadas pelo querelado (fls. 13 e 14, p. ex.), percebe-se que as discussões eram acaloradas. Tanto de um lado como de outro. Como, aliás, devem ser os debates de ideias.
 
14. É de bom-tom realçar também que o querelante é o mesmo que chamou imbecil ao Papa Bento XVI (fl. 16)[9]!
 
15. Um pouco de perplexidade toma conta do ambiente quando se comparam os comentários do querelante sobre o Papa Bento XVI com aqueles feitos pelo querelado. Ou seja: para o querelante, chamar o Papa Bento XVI de imbecil não é crime, mas ser chamado de mentiroso o é! Qual é o critério?
 
16. Mais importante até do que chamar Papa Bento XVI de imbecil, dentro da Igreja Católica, é se recusar a aceitá-lo como pastor da Igreja universal[10]. Houve Papas que não eram santos nem sábios. Aliás, alguns até longe passaram da santidade. Mas a aceitação da jurisdição universal do Papa é uma regra impositiva ao católico, pois, não aceitá-la caracteriza cisma, e foi o próprio querelado que o explicou com proficiência, sustentando-se na doutrina de São Tomás de Aquino. Noutras palavras: cismático é o termo técnico para designar quem renega a autoridade do Bispo de Roma, como é o caso do querelante, que se recusava a aceitar Bento XVI como sucessor de São Pedro!
 
17. Chamá-lo de mentiroso e herege poderia ser injurioso, se o querelante, dizendo-se católico, não renegasse uma verdade de ; qual seja: a da transubstanciação do pão no Corpo de Cristo que ocorre no sacrifício da Missa.
 
18. Trata-se de verdade revelada por Deus, de acordo com a Bíblia[11] e o Magistério da Igreja, que o pão se transforma em Corpo de Cristo durante a Missa! Verdade de !
 
19. Quem, dizendo-se católico, nega uma verdade de fé infelizmente só pode ser chamado mentiroso e herege[12], pois, a despeito de serem termos pesados, são os únicos que retratam a situação que se quer expor com a franqueza que o debate intelectual exige. E, nos debates intelectuais, não há espaço para tergiversações como as feitas nos processos judiciais, em que, ao se deparar com uma mentira, as pessoas, talvez porque politicamente corretas, digam que o mentiroso faltou com a verdade para não dizer que mentiu.
 
20. Noutro versar: a despeito de duras, dentro do contexto em que inseridas[13], as palavras do querelado serviram para desnudar as verdadeiras opiniões manifestadas com aspereza pelo querelante[14], que em absolutamente nada se aproximam do Magistério da Igreja cuja fé assegura professar.
 
21. Só que o que mais importa para o caso é o seguinte: as críticas do querelado inserem-se num contexto em que a liberdade é a regra, porque feitas quando debatidos temas filosóficos/religiosos.
 

b) Direito à crítica

 

22. Relembre-se que toda a celeuma narrada agora teve início quando o querelante postou no Youtube aula na qual desdenha a Fé Católica, questiona verdades com as quais o povo católico sustenta as próprias vidas, faz pouco dos dogmas que alicerçam a Igreja.
 
23. O querelante então deliberadamente tornou públicas opiniões suas que desbordam a Doutrina da Igreja, que com ela se chocam frontalmente, mas não gostaria de ser criticado? O querelante quereria que suas ideias extravagantes[15] fossem acolhidas sem qualquer contestação?
 
24. Todos têm o direito de discordar[16]. Inclusive do Papa, como bem demonstra o querelante ao alcunhá-lo imbecil, pois, ainda que dentro da Igreja Católica a liberdade não seja tão grande[17], no Brasil há a liberdade constitucionalmente garantida para a crítica (artística, filosófica e etc.).
 
25. Imagine se os jogadores de futebol processassem, exempli gratia, os comentaristas da Sportv que os chamassem de pés-duros, que tirassem sarro quando os chutes fossem para longe do gol, ou quando começassem a rir de alguma jogada mais inusitada. Tudo no mundo viraria processo.
 
26. E por que qualquer crítica que se faça não se transforma em processo?
 
27. Porque a crítica é inerente a uma sociedade plural e democrática. Da mesma forma que o querelante pode imotivadamente chamar o Papa Bento XVI de imbecil, também pode ser alcunhado mentiroso, ainda mais se houver motivo para tanto.
 
28. Esses ataques, quando feitos dentro do exercício da crítica, hão de ser tolerados, pois, caso contrário, instalar-se-á o reino do terror, em que as pessoas jamais diriam o que pensam nem o que professam com medo de sofrer represálias judiciais. Aliás, parece que o querelante, insensível quando ataca seus virtuais adversários, mas sensibilíssimo quando é atacado, conta com a anuência do Poder Judiciário para calar quem dele discorda.
 
29. Cumpre recordar que, se levada a termo for a intenção penal do querelante, o próprio Jesus Cristo haveria de ser responsabilizado também pelas duras críticas tecidas publicamente contra os fariseus, haja vista que os chamou de hipócritas e sepulcros caiados. Mas se até sob o império romano existia a liberdade de crítica, não haverá hoje no Brasil?
 

c) Dois pesos e duas medidas

 

30. Aqui não se quer justificar um erro com outro. Não se quer afirmar que, porque o querelante errou ao chamar o Papa Bento de imbecil, equívoco que não seria punido por evidentes razões, ter-se-ia de perdoar o equívoco do querelado, como se um erro justificasse outro.
 
31. Não é isso. O que se quer dizer é que no ambiente em que as críticas foram feitas é normal certa aspereza nas colocações. Aspereza, aliás, vista com mais frequência nas afirmações do querelante do que nas do querelado, como uma simples passada d’olhos nos autos poderá comprovar[18].
 
32. Portanto, porque esse é o comportamento normal dos contendores em recorrentes discussões filosóficas e/ou religiosas e/ou políticas, como demonstram as próprias invectivas do querelante contra seus adversários ideológicos[19], não há como acolher o pedido condenatório por ele feito, uma vez que isso lhe daria o monopólio da crítica[20].
 
33. Quer-se aqui, já que todos os envolvidos se autodenominam católicos, a aplicação do princípio segundo o qual a régua com que medirdes será a mesma com a qual serás medido.
 
34. Não há como dar ao querelante o que ele quer, sem com isso ferir de morte a livre manifestação do pensamento.


IV. Conclusão

 
35. Em razão do exposto, porque atípicas as condutas do querelado, ele quer sejam os pedidos condenatórios julgados totalmente improcedentes.
 

Campo Grande (MS), 26 de março de 2015.

 

 

TIAGO BANA FRANCO

OAB/MS 9.454

 



[1] Não que as opiniões do querelante fossem desconhecidas de seus alunos. Todos eles conhecem-nas, e aqueles que são só um pouquinho estudiosos sabem que são absolutamente contrárias à Doutrina Católica.
[2] Trata-se daquilo que os doutos em Direito constitucional hoje denominam de intolerância dos tolerantes.
[3] Não há como olvidar a lição de Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha:
“Os diversos círculos sociais existentes na sociedade como um todo têm comportamentos os mais variados, de sorte que uma palavra pode ser insultuosa num deles, inócua no outro e até elogiosa num terceiro.” (Crimes contra a honra. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 79)
[4] Parece, e não se quer aqui entrar no mérito, que não é o caso do querelante.
[5] Texto postado pelo querelante em sua página do Facebook no dia 08 de março às 19:28:
“(...) Abaixo essa vil mentira! A «igualdade» entre opressores e oprimidos, entre explorados e exploradores é impossível, não existe e jamais existirá. Não pode haver, não há e não haverá verdadeira «liberdade» enquanto a mulher não for libertada dos privilégios que a lei reconhece ao homem, enquanto o operário não for libertado do jugo do capital, enquanto o camponês trabalhador não for libertado do jugo do capitalista, do latifundiário, do comerciante." - Lenin
[6] Por exemplo, o Decretum contra communismum exarado pelo Santo Ofício em 1949, no qual se lê:
Q. 4. Utrum Christifideles, Qui communistarum doctrinam materialisticam et anti Christianam profitentur, et in primis, Qui eam defendunt vel propagant, ipso facto, tamquan apostatae a fide catholica, incurrant in excommunicationem speciali modo Sedi Apostolicae reservatam. [Se os fiéis de Cristo, que declaram abertamente a doutrina materialista e anticristã dos comunistas, e, principalmente, a defendam ou a propagam, ipso facto caem em excomunhão (speciali modo) reservada à Sé Apostólica?]
“R. Affirmative.”
[7] Àqueles que não aceitam o Magistério da Igreja, recomenda-se vivamente que se dirijam à outra denominação religiosa que professe fé assemelhada à sua. Se não houver, há-se de recordar que se vive num Estado laico e livre, no qual qualquer pessoa pode inclusive fundar sua própria Igreja, sem a objeção de quem quer que seja.
O que não se pode admitir é que alguém se diga Muçulmano, por exemplo, mas não siga o profeta Maomé. Ou que se diga Judeu, recusando o Velho Testamento. Ou que se diga Batista, e não aceite a convenção que rege as Igrejas Batistas.
Se alguém fizer isso, estará obviamente recaindo em flagrante contradição, pois, ao tempo que diz uma coisa, professa seu contrário. E, caso não seja portador de qualquer distúrbio de personalidade, estará mentindo.
[8] TJ-DF - APR: 20130910205924 DF 0020073-43.2013.8.07.0009, Relator: ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, Data de Julgamento: 18/12/2014, 2ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 09/01/2015 . Pág.: 207.
[9] Sobre isso, alguma coisa há de ser realçada. Nem mesmo os mais figadais inimigos do Papa Bento XVI ousaram chamá-lo imbecil, porque reconhecidamente se trata de um dos maiores teólogos do nosso tempo. Mas o sensibilíssimo querelante o fez, talvez ciente de que Sua Santidade não sairia de Roma com destino ao Juizado Especial mais próximo para processá-lo.
Sobre as críticas feitas ao Papa Bento, calham à fiveleta os comentários de Marco Marrafon em artigo veiculado pelo Conjur:
“Mas por que é tão difícil mudar de opinião, mesmo quando há evidencias de erro em seu próprio argumento? Como é possível que alguém continue acreditando em uma ideia pré-concebida ainda que haja fortes razões em sentido contrário?
“O fenômeno do autoengano se realiza na dinâmica entre três variáveis: desejo, conflito interno fomentado pelo sentimento de culpa e argumento salvador.”
(http://www.conjur.com.br/2015-mar-24/constituicao-poder-autoengano-politico-coloca-risco-estado-direito)
 
[10] Eis o comentário feito pelo querelante, dos quais são destacados alguns trechos:
“Cicrano de Oliveira - 16/03/2007
“Em minha dissertação ‘O ostracismo da Teologia da Libertação’ já alertava para o movimento iniciado pelo então Papa João Paulo II de perseguição a Teologia da Libertação favorecendo a restauração de uma nova cristandade com novas características. Esse sr. Ratzinger, que eu recuso em reportar como Papa, representa o mesmo projeto do Papa anterior. É lamentável essa condenação, mas não representa nenhuma surpresa para quem conhece o velho cardeal alemão ‘o exterminador do Cristianismo’. Sobrino, para cada condenação que sofreres desse imbecil que se acha Papa e Teólogo, lembre-se que estás a construir o Reino de Deus a partir dos sofredores dessa América Latina.”
Comentário feito no site: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Vaticano-condena-mais-um-teorico-da-Teologia-da-libertacao/4/12932
[11] I Carta aos Coríntios (cap. XI, versículo XXIII):
“Ego enim accepi a Domino, quod et tradidi vobis, quoniam Dominus Iesus, in qua nocte tradebatur, accepit panem.”
[12] Se os Bispos brasileiros estivessem mais preocupados com as almas dos fiéis do que com a reforma política, por exemplo, o querelante já teria sido excomungado há tempos, pois se recusa a aceitar verdades de fé, ao questionar, dentre outras coisas, a presença de Jesus no pão eucarístico. Eis o Código de Direito Canônico que não deixa dúvida:
“Cân. 897 — O augustíssimo Sacramento é a santíssima Eucaristia, na qual o próprio Senhor Jesus Cristo se contém, se oferece e se recebe, e pela qual continuamente vive e cresce a Igreja. O Sacrifício eucarístico, memorial da morte e ressurreição do Senhor, em que se perpetua através dos séculos o Sacrifício da Cruz, é a culminância e a fonte de todo o culto e da vida cristã, pelo qual se significa e se realiza a unidade do povo de Deus e se completa a edificação do Corpo de Cristo. Os demais sacramentos e todas as obras eclesiásticas de apostolado relacionam-se com a santíssima Eucaristia e para ela se ordenam.”
[13] Só para se ter ideia de como os debates intelectuais são duros, em polêmica com o então Presidente da Associação Nacional dos Magistrados Trabalhistas, Sr. Grijalbo Fernandes Coutinho, o jornalista Olavo de Carvalho chamou-o de burro pretensioso em mais de uma ocasião. Sequer houve notícia de qualquer processo que tenha sido movido pelo Magistrado, pois todos sabem que nesse nível de discussão as duras colocações fazem parte do jogo. Eis o link que prova o afirmado: http://www.olavodecarvalho.org/textos/grijalbo.htm
[14] Como, por exemplo, quando chamou Bento XVI de imbecil.
[15] Dentro do catolicismo, as ideias ventiladas pelo querelante são extravagantes, para se dizer o mínimo e não prolongar a discussão de fundo para além dos limites da lide.
[16] O direito de concordar é exercido até nas ditaduras mais sanguinárias, como a cubana.
[17] Quem critica um dogma católico, por exemplo, deveria ser excomungado, pelo Código de Direito Canônico, como, aliás, o querelado deixou claro no texto objeto da discussão (fl. 19).
[18] Baboseiras e imbecil são palavras recorrentes no vocabulário usado pelo querelante em suas manifestações públicas.
[19] Mais uma postagem extraída da página do Facebook do querelante, com os destaques que não constam no original:
“Explicando a democracia. Embora o governador Azambuja tenha concordado com a nomeação da sobrinha de um deputado para o TCE, e tenha negado a jornada de 30 hs para enfermeiros e outras coisas a mais, ninguém que não votou nele está pedindo a sua saída do governo ou com camisetas imbecis, eu não votei nele. E por um motivo muito simples, a maioria escolheu ele é deve ser respeitada. O que devemos fazer é fiscalizar e mesmo ajudar para que tenha um bom governo. Porque se ele for mal, quem perde somos nós. Isso é democracia.”
[20] Esse é o sonho socialista tal qual concebido por Gramsci; mas, por enquanto ao menos, o Brasil ainda não chegou à tão almejada civilização, em que as diretrizes do Partido seriam tomadas como imperativos categóricos, com a consequente proibição de críticas feitas por quem estaria fora do Partido onipresente.