sábado, 19 de março de 2022

Submissão de Michel Houellebecq

    Em Submissão, Michel Houellebecq narra a trajetória de um professor universitário parisiense, dotado de certa notoriedade, num momento (imaginário mas não distante) de transição em França: aquele em que um brilhante líder da Fraternidade Muçulmana ganha as eleições para presidente e passa a dirigir o futuro da nação que já foi considerada a filha mais velha da Igreja Católica!


    Relata, no princípio em forma de diário, suas desventuras amorosas com as jovens alunas para quem lecionava, sua vida destituída de qualquer sentido que não fossem os prazeres carnais, sua ânsia desenfreada para satisfazer-se a si mesmo e aos seus instintos, personificando aqueles que, como dizia São Paulo, têm o ventre como Deus.

    

    Esse professor inicia, enquanto as mudanças políticas são implementadas pelo líder da Fraternidade Muçulmana à testa do governo francês, uma tímida busca por algo sobrenatural, seguindo os passos de Huysmans, romancista do séc. XIX que na penumbra de uma vida devassa convertera-se ao catolicismo, a quem o prof. François dedicara seu doutorado e parte significativa de sua atividade acadêmica.


    Vindo de uma família destruída, solitário, sem passado nem propósito, François personifica a França contemporânea. François é a França. Alguém que vive de perambular entre a grandeza dum passado glorioso e o nebuloso e obnubilado futuro que se achega. Futuro em que terá de submeter-se ao Islã, não só para aplacar seu vazio existencial como para satisfazer os prazeres mais carnais.


    François e a França atual são uma coisa só, pois. E tanto um como o outro torna-se submisso à religião do livro, pois não há presa mais fácil para os seguidores de Mafoma do que aquele que joga fora sua própria identidade, a razão de seu ser, o propósito de sua existência em troca de confortos materiais outorgados por aquilo que os materialistas mais amam: um estado provedor!


    Eis aí o triste fim ao qual se chega nesse breve mas instigante romance.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Os Demônios

        Em Os Demônios, um dos livros mais interessantes e proféticos que li nos últimos tempos, Dostoiévski trata de uma célula socialista instalada no interior da Rússia em meados do séc. XIX, do caráter das personagens que a integravam ou com ela esbarravam, e também das relações de poder havidas entre tais pessoas; sendo que todas elas eram mentalmente atormentadas, perturbadas, enfermas por força do niilismo que então tomava conta da já ébria sociedade russa. E esse grupo era como uma legião demoníaca, aquela que Jesus expulsara duma alma atormentada permitindo que se apossasse duma vara de porcos que veio a jogar-se dum despenhadeiro. Eis a razão do nome do romance.


Piotr Stiepánovitch, o filho olvidado de um pretenso intelectual que vive à custa de uma rica proprietária de terras, resolve tornar à província depois de formar-se no exterior.


Imbuído do espírito revolucionário que grassava a Europa ocidental, Piotr Stiepánovitch monta nos confins da Rússia uma célula revolucionária com a qual pretendia colocar a velha e atrasada sociedade russa às avessas, destruí-la mesmo em seus alicerces  para que sobre os escombros dela surgisse outra, forjada de acordo com as ideias socialistas, uma sociedade capaz de parir os novos homens; os quais seriam capitaneados obviamente… por ele, Piotr Stiepánovitch!


E para isso, Piotr Stiepánovitch - que via a si mesmo como uma figura asquerosa, repugnante, coisa que ele fazia questão de sê-lo ao comportar-se de maneira rude e deselegante - necessitava de alguém a quem o povo pudesse seguir com admiração, um semideus aristocrático que desse aos seus planos luciferinos o verniz propagandístico do qual precisavam para que fossem adiante. E há alguém que se encaixa nesse perfil, exatamente o filho da proprietária de terras que sustenta seu pai. E o nome desse novo mas atormentado messias é Stravoguin!


Depois de uma série de peripécias que desencadeiam assassinatos, incêndios, roubos, loucuras e tragédias sem fim, a célula revolucionária é desfeita com o encarceramento de parte significativa de seus membros e o suicídio do messias de alma enegrecida, pois nem mesmo ele suportou a carga de seus muitos crimes e pecados.


Ou seja: no romance, a ordem da já combalida sociedade russa vence a desordem das científicas ideias novas! Coisa que não se repetirá na realidade aquando da Revolução socialista capitaneada por Lênin e do massacre que se lhe seguiu.


O livro é interessantíssimo porque demonstra, com análises psicológicas que só mesmo Dostoiévski conseguiria traçar, o perfil de muitos daqueles que querem construir um mundo melhor! São - e eis algo que o livro deixa claro, com seus diálogos atordoantes - pessoas que, diante dum vazio espiritual absurdo, tentam preencher suas vidas sem propósito (porque sem Deus) dando-lhes uma finalidade político-religiosa, um desiderato  ilusório que permita com que continuem a viver: a revolução socialista que conduzirá a todos a um mundo por elas idealizado!


Sem dúvida alguma, é um livro obrigatório para quem quer entender não só como se forma a mística que circunda os movimentos revolucionários, como ela é mantida e o modo com o qual se expande, mas também as causas do declínio civilizacional que permite o surgimento e o crescimento dessas novas religiões políticas.


Dostoiévski é sempre bom! Mas a leitura d’Os Demônios é essencial nos dias por que passamos.