sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Quantos ovos há na cartela?

Bolsonaro realmente deve ser um cara ruim. Muito ruim. Só mesmo tamanha ruindade poderia justificar o silêncio complacente com o qual os meios de comunicação, a academia e os democratas de ocasião aceitam o que está sendo feito pelo Supremo Tribunal Federal e seu anexo, o Tribunal Superior Eleitoral.


A coisa não começou com a anulação das condenações do Lula, mas ao fazê-lo, o STF deixou claro que ninguém lhe poria limite. Muito menos a Constituição Federal.


Relembro que se anularam tais condenações em julgamento de embargos de declaração em habeas corpus. Para quem não é do ramo, seria o mesmo que o juiz marcar um pênalti inexistente depois do fim da partida, pedindo para que os times, já no vestiário, retornassem para que fosse cobrado. Coisa nunca vista!


Continuaram com os inquéritos ilegais em que o Supremo Tribunal Federal investiga, investiga, investiga e investiga fatos criminosos que ninguém sabe quais são. Inquéritos nos quais os ministros do Supremo Tribunal seriam as vítimas, os investigadores, os acusadores e os juízes! Também uma novidade!


Importante lembrar que ainda há pessoas presas em razão desses inquéritos, sem qualquer condenação, cidadãos comuns que jamais poderiam ser julgados pelo STF, isso depois de parlamentares serem encarcerados por delitos de opinião, tudo também contra o texto da Constituição.


Agora o Supremo Tribunal e o Tribunal Eleitoral censuram veículos de comunicação e blogs, todos eles simpatizantes ou apoiadores do presidente Bolsonaro, porque estariam maculando a honra do candidato Lula, ligando-o aos esquemas de corrupção do seu governo, aqueles mesmos que renderam a esse candidato, de acordo com seu ex-ministro da Fazenda Palocci, dinheiro suficiente para que se aposentasse tranquilamente.


O que me leva a perguntar: onde estão os defensores da democracia?


Aqueles que bradam contra as prisões arbitrárias de cinquenta anos atrás não abrem a boca sobre as ilegalidades atuais? Os meios de comunicação também não dizem nada? E os acadêmicos? Esses parecem apoiar, com cartinhas extemporâneas que revivem dias gloriosos de luta contra uma ditadura extinta faz quarenta e tantos anos, essa insana busca de cercear a liberdade das pessoas comuns que seriam, na visão deles, a encarnação do mal absoluto porque eleitoras e simpatizantes de Bolsonaro.


Engraçado que esses democratas pensam que, com Lula eleito, as coisas retornarão ao normal. As instituições - essa abstração preenchida por homens de índoles duvidosas, cujos nomes podem ser lembrados pelo próprio leitor - voltariam a funcionar tranquilamente, pois, ao fim e ao cabo, a democracia estaria salva desse monstro que atualmente governa o Brasil.


Esquecem-se de um ditado antigo, do interiorzão do país, segundo o qual não existe salvação para cachorro que come ovo. Ele sempre quererá comer mais e mais e mais. Insaciavelmente. Pois é. E o atual Supremo é esse cão! O importante agora é saber se, eleito o Lula, quantos ovos ele terá na cartela!

sábado, 19 de março de 2022

Submissão de Michel Houellebecq

    Em Submissão, Michel Houellebecq narra a trajetória de um professor universitário parisiense, dotado de certa notoriedade, num momento (imaginário mas não distante) de transição em França: aquele em que um brilhante líder da Fraternidade Muçulmana ganha as eleições para presidente e passa a dirigir o futuro da nação que já foi considerada a filha mais velha da Igreja Católica!


    Relata, no princípio em forma de diário, suas desventuras amorosas com as jovens alunas para quem lecionava, sua vida destituída de qualquer sentido que não fossem os prazeres carnais, sua ânsia desenfreada para satisfazer-se a si mesmo e aos seus instintos, personificando aqueles que, como dizia São Paulo, têm o ventre como Deus.

    

    Esse professor inicia, enquanto as mudanças políticas são implementadas pelo líder da Fraternidade Muçulmana à testa do governo francês, uma tímida busca por algo sobrenatural, seguindo os passos de Huysmans, romancista do séc. XIX que na penumbra de uma vida devassa convertera-se ao catolicismo, a quem o prof. François dedicara seu doutorado e parte significativa de sua atividade acadêmica.


    Vindo de uma família destruída, solitário, sem passado nem propósito, François personifica a França contemporânea. François é a França. Alguém que vive de perambular entre a grandeza dum passado glorioso e o nebuloso e obnubilado futuro que se achega. Futuro em que terá de submeter-se ao Islã, não só para aplacar seu vazio existencial como para satisfazer os prazeres mais carnais.


    François e a França atual são uma coisa só, pois. E tanto um como o outro torna-se submisso à religião do livro, pois não há presa mais fácil para os seguidores de Mafoma do que aquele que joga fora sua própria identidade, a razão de seu ser, o propósito de sua existência em troca de confortos materiais outorgados por aquilo que os materialistas mais amam: um estado provedor!


    Eis aí o triste fim ao qual se chega nesse breve mas instigante romance.

segunda-feira, 14 de março de 2022

Os Demônios

        Em Os Demônios, um dos livros mais interessantes e proféticos que li nos últimos tempos, Dostoiévski trata de uma célula socialista instalada no interior da Rússia em meados do séc. XIX, do caráter das personagens que a integravam ou com ela esbarravam, e também das relações de poder havidas entre tais pessoas; sendo que todas elas eram mentalmente atormentadas, perturbadas, enfermas por força do niilismo que então tomava conta da já ébria sociedade russa. E esse grupo era como uma legião demoníaca, aquela que Jesus expulsara duma alma atormentada permitindo que se apossasse duma vara de porcos que veio a jogar-se dum despenhadeiro. Eis a razão do nome do romance.


Piotr Stiepánovitch, o filho olvidado de um pretenso intelectual que vive à custa de uma rica proprietária de terras, resolve tornar à província depois de formar-se no exterior.


Imbuído do espírito revolucionário que grassava a Europa ocidental, Piotr Stiepánovitch monta nos confins da Rússia uma célula revolucionária com a qual pretendia colocar a velha e atrasada sociedade russa às avessas, destruí-la mesmo em seus alicerces  para que sobre os escombros dela surgisse outra, forjada de acordo com as ideias socialistas, uma sociedade capaz de parir os novos homens; os quais seriam capitaneados obviamente… por ele, Piotr Stiepánovitch!


E para isso, Piotr Stiepánovitch - que via a si mesmo como uma figura asquerosa, repugnante, coisa que ele fazia questão de sê-lo ao comportar-se de maneira rude e deselegante - necessitava de alguém a quem o povo pudesse seguir com admiração, um semideus aristocrático que desse aos seus planos luciferinos o verniz propagandístico do qual precisavam para que fossem adiante. E há alguém que se encaixa nesse perfil, exatamente o filho da proprietária de terras que sustenta seu pai. E o nome desse novo mas atormentado messias é Stravoguin!


Depois de uma série de peripécias que desencadeiam assassinatos, incêndios, roubos, loucuras e tragédias sem fim, a célula revolucionária é desfeita com o encarceramento de parte significativa de seus membros e o suicídio do messias de alma enegrecida, pois nem mesmo ele suportou a carga de seus muitos crimes e pecados.


Ou seja: no romance, a ordem da já combalida sociedade russa vence a desordem das científicas ideias novas! Coisa que não se repetirá na realidade aquando da Revolução socialista capitaneada por Lênin e do massacre que se lhe seguiu.


O livro é interessantíssimo porque demonstra, com análises psicológicas que só mesmo Dostoiévski conseguiria traçar, o perfil de muitos daqueles que querem construir um mundo melhor! São - e eis algo que o livro deixa claro, com seus diálogos atordoantes - pessoas que, diante dum vazio espiritual absurdo, tentam preencher suas vidas sem propósito (porque sem Deus) dando-lhes uma finalidade político-religiosa, um desiderato  ilusório que permita com que continuem a viver: a revolução socialista que conduzirá a todos a um mundo por elas idealizado!


Sem dúvida alguma, é um livro obrigatório para quem quer entender não só como se forma a mística que circunda os movimentos revolucionários, como ela é mantida e o modo com o qual se expande, mas também as causas do declínio civilizacional que permite o surgimento e o crescimento dessas novas religiões políticas.


Dostoiévski é sempre bom! Mas a leitura d’Os Demônios é essencial nos dias por que passamos.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Notas sobre a conversa entre Sandel e Barroso

Depois de assistir ao bate-papo entre Luís Roberto Barroso e Michael Sandel, resolvi ler o livro cujas comemorações pelos dez anos de sua publicação no Brasil haviam ensejado esse encontro virtual: Justiça!


E o que realmente chama a atenção nos argumentos de Sandel - postos sem meias-palavras na conversa que teve com Barroso, mas colocados de modo mais elaborado no livro - é a maneira com a qual ele deixa de lado a ideia de John Rawls de que o Estado liberal, para sê-lo, haveria de abrir mão das discussões sobre o que é o bem comum para servir como mero mediador entre as personagens que disputam seus pontos de vista no octógono social.


Sem dúvida que é uma guinada entre os pensadores americanos, principalmente aqueles mais influenciados pelo contratualismo, uma vez que, tal qual concebido, o Estado liberal jamais disputaria ou haveria de disputar qualquer argumento de fundo, limitando-se a permitir que cada pessoa viva sua vida buscando a felicidade da maneira como entende ser a mais adequada. O bem comum, nessa perspectiva, seria a manutenção da ordem capaz de permitir que cada indivíduo viva de acordo com suas crenças pessoais, sem que isso degringole numa desordem.


A missão do Estado liberal, bem se vê, beira o impossível: manter a ordem num ambiente social caótico e desagregador!


Justamente porque inviável seria organizar uma sociedade extremamente individualista, desordenada porque sem rumo definido, desagregada pelos vários blocos de interesses diversos que se formaram em seu interior, muitos dos quais artificialmente criados para cindir as pessoas em antagonismos bobos, é que Michael Sandel parece querer tornar a fazer com que o Estado busque algo que não seja a mera mediação entre os interesses individuais, aspire a que o Estado tenha uma verdadeira ordem social, bens e objetivos que sejam comuns a todos os membros da pólis.



Ainda que a ordem social que muitos gostariam de ter não seja a mesma de Sandel, pelo menos ele se dispôs a discutir isso sem subterfúgios retóricos, como aqueles usados por Barroso.


Para ficar no exemplo mais marcante da conversa entre os dois: o aborto!


Barroso colocou que é pessoalmente contra o aborto, mas que seria uma injustiça criminalizá-lo, como ocorre no Brasil, pois o Estado não poderia impor a moral dominante àqueles que dela discordam, de modo que caberia ao Estado simplesmente permitir que quem quisesse fazê-lo o fizesse livremente.


Por seu turno, Sandel defendeu de viva voz que, na discussão judicial do aborto, dever-se-ia analisar quando a vida tem início: se no momento da concepção, como defende a Igreja Católica, ou em algum átimo depois dela.


Claro que o argumento de Barroso, sob a roupagem liberal de John Rawls, não passa de um subterfúgio retórico apto a permitir que tal prática venha a ser não só aceita mas incentivada pelo Estado, sem que a discussão de fundo seja de fato enfrentada. Enquanto Sandel corajosamente se dispõe a encarar o problema em sua inteireza para saber se a prática do aborto constitui ou não o assassinato de um ser vivo, pois essa é realmente a questão a ser debatida.


Sandel defende que a vida não começa na concepção, não explicando quando ela tem início; mas só a valentia que tem de não ocultar o problema debaixo do tapete do bom-mocismo do Estado liberal já é algo que deve ser louvado.


E não é o aborto em si mesmo considerado sobre o que escrevo. Limito-me a felicitar essa mudança no pensamento moderno, uma verdadeira ruptura nele, alteração por meio da qual a busca pelo bem comum parece retornar à discussão dos que realmente pensam sobre a Justiça; pois o confronto franco de ideias, sem peias nem melindres, permitirá que a sociedade se unifique em torno daquilo que realmente considera bom, una-se sobre objetivos que haveriam de ser os mesmos de todos os que querem compartilhar não só uma história comum, mas também o mesmo futuro juntos.