quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

O Brasil de Miguel Reale Jr.

Poucos trabalhos demonstram a incapacidade que o intelectual brasileiro tem de ver a realidade nua e crua como o artigo “Brasil acima de tudo” de Miguel Reale Jr.,  publicado pelo Estadão em primeiro de dezembro de 2018.
Reale Jr. inicia seu trabalho com menção à distinção feita por Emmanuel Macron, ao discursar no centenário do fim da Primeira Grande Guerra, entre nacionalismo e patriotismo. Segundo o presidente francês, o nacionalismo consistiria em odiar os outros países; enquanto o patriotismo, em amar o seu próprio.
Sabe-se lá por que guardaria relação com o texto, Reale Jr. cita também o livro la Grande Guerre - Une Histoire Franco-allemand, escrito por Becker e Krumeich, obra em que os autores, de acordo com Reale Jr., argumentam que a Primeira Guerra Mundial seria essencialmente uma guerra entre franceses e alemães, “fruto de um nacionalismo irracional que nada tinha que ver com a vivência de valores de cada uma dessas nações”.
Depois de fazer tal introdução, Reale Jr. critica o que ele próprio chama de “ideário anti-iluminista” do futuro chanceler brasileiro. 
Ainda seguindo a trilha de Reale Jr., será belicoso o tom da política externa do Brasil, como o da atual política externa norte-americana, uma vez que, de acordo com o novo chanceler brasileiro Ernesto Araújo, “o centro do ocidente está não numa doutrina econômica ou política, mas no anseio por Deus, no Deus que age na História”. E assim o novo chanceler brasileiro substituiria o “Estado Democrático de Direito” - que seria a marca distintiva do Ocidente, de acordo com o articulista - por uma visão retrógrada na qual “os valores e crenças forjados em determinado território, bem como a família, os heróis míticos do país e Deus” passariam a ser louvados.
Ou, em palavras mais simples, Reale Jr. não aceita a substituição do cosmopolitismo que rege a política externa nacional por uma visão mais nacionalista dela, porque, e essa conclusão está implícita no texto, tal nacionalismo desnudaria um verdadeiro ódio aos outros países, e não verdadeiro amor ao Brasil.
E Reale Jr. termina dizendo que o futuro chanceler brasileiro é um neófito que desconhece a cultura que sustenta a política externa brasileira há anos.
Em primeiro lugar, a distinção feita por Macron entre nacionalismo e patriotismo é ginasiana. E isso por uma razão bastante simples: quem ama seu país não quer vê-lo destruído pelos outros.
De fato, o elogiado patriotismo conduziria ao malquerido nacionalismo, assim que a pátria fosse atacada! Ou alguém que ama seu país também ama aquele que quer subjugá-lo ou destruí-lo? De Gaulle seria patriota ou nacionalista por amar a França e odiar os alemães que queriam com ela acabar?
Só com isso se percebe que a frase de Macron, que deixou tão forte impressão em Reale Jr., não passa de mais um jargão marqueteiro. E o fato de Reale Jr. levá-la a sério só demonstra que ele só pensa por meio de jargões.
De outro lado, e aqui está a realidade que se impõe ao discurso bonitinho dos bem-pensantes, Macron hoje é acusado de alta traição por generais franceses e vê as ruas de Paris pegarem fogo justamente em razão de sua visão cosmopolita, por meio da qual desampara os franceses para acolher os refugiados, que em sua maioria são muçulmanos que odeiam a França. Acrescentando uma terceira categoria à distinção por ele próprio proposta, Macron seria um patriota, um nacionalista ou um traidor?
Depois, Reale Jr. argumenta que o Estado Democrático de Direito é a diferença específica entre o Ocidente e o resto do mundo.
Nunca li tamanho disparate!
O que distingue o Ocidente do resto do mundo é a junção entre Cristianismo, filosofia grega e Direito romano. Tanto que muito antes do Estado Democrático de Direito exsurgir da farsa iluminista já havia o Ocidente bem distinto do resto do mundo! E por quê? Ora, porque o Ocidente era cristão e fruia a filosofia grega numa organização jurídica (semelhante à) romana! Ou alguém acha que a sociedade franca desenvolvida por Carlos Magno poderia ser confundida com a dos seguidores de Mafoma?
Logo, não é o Estado Democrático de Direito que distingue o Ocidente do resto. Mas Cristo, Roma e Grécia. E é justamente os valores que foram legados por meio da união dessas três visões de mundo que o chanceler não só quer resgatar, mas, se Deus quiser, irá fazê-lo! O que tornará o Brasil de novo a Terra de Santa Cruz.
Claro que a realidade não cabe no raciocínio (ou seria raciossímio) de Reale Jr. Justamente porque Reale Jr. não se importa com ela. Quer que ela desapareça, se por acaso não servir para comprovar suas teses malucas. Noutras palavras: se a realidade é grande demais para caber no caixão ideológico que é a mente de Reale Jr., cortem-lhe os pés e os braços para que caiba!

Ainda bem que, como diria o grande músico cubano Compay Segundo, oui parle français!

domingo, 16 de dezembro de 2018

Direito e revolução

Há algo contagiante na lógica iluminista. E maluco. Algo que infectou o raciocínio ocidental de tal modo que hoje é impossível entrever os mundos antigo e medieval, bem como a ideia de Justiça que havia nesses períodos.

Hoje se pensa, e graças às ideais iluministas se pensa que há sempre uma regra geral e abstrata capaz de subordinar todos os fatos contidos na hipótese que ela descreve. Se a, então necessariamente b. Pensa-se sempre em regras que regem o comportamento. Não só físicos como, especial e curiosamente, humanos, sociais.

Se os físicos não mais cogitam a existência de tais regras depois do desenvolvimento da Física Quântica e da comprovada relatividade do espaço e do tempo, as pessoas comuns seguem apegadas a essa ideia. Trata-se do método lógico-dedutivo empregado sem qualquer consideração à realidade.

Na área com a qual mais sou familiarizado, o Direito, a utilização do método lógico-dedutivo trouxe consigo os códigos e as constituições que regem quase todos os países ocidentais. O Estado iluminista, do qual ainda não escapamos completamente, funda seu raciocínio no método lógico-dedutivo. Aventa hipóteses, com as quais quer abarcar os comportamentos humanos que considera relevantes, e o faz com uma sanha imaginativa sem limites, hipóteses para as quais liga consequências. Não, como na Física newtoniana, consequências que seriam naturais, fatos que ocorreriam naturalmente assim que realizadas as hipóteses previstas nas regras; mas consequências que hão de ser impostas pelo próprio Estado. Matar alguém (hipótese), pena (a ser imposta pelo Estado) de seis a dez anos (consequência).

Se o método lógico-dedutivo acarreta uma certa dose de certeza, algo pelo qual ansiava e ainda anseia o mundo dos comerciantes e industriais, seu uso encobriu o próprio conceito de Justiça das eras pretéritas.

E nós não conseguimos entrever o conceito de Justiça tal qual os antigos, simplesmente porque não fazemos o que eles outrora faziam. Não apreendemos uma série de fênomenos sociais idênticos para, depois de analisá-los um por um, verificarmos qual é a regra, abstraída da realidade colhida caso a caso, que se lhes pode aplicar. Não elevamos nosso raciocínio do individual para o abstrato a fim de só depois retornarmos do abstrato para o individual. Simplesmente aceitamos as regras abstratas sem questioná-las, como se fossem manifestações da divindade, a despeito de serem  criadas às mais das vezes por parlamentos corrompidos e decadentes.

Ocorre que no passado as manifestações da divindade eram vistas e percebidas na realidade. As pessoas, e até mesmo os juristas, colhiam os exemplos de como as sociedades de fato eram, como se regiam para, só depois, retirar algo que lhes fosse comum, a fim de verificar a real existência d'uma regra  aplicada a todas as situações analisadas, ainda que se levassem em conta as diferenças específicas de cada uma em particular.

A distância entre as duas visões de mundo é abissal.

Se nos tempos antigos e medievais o Direito era retirado da realidade, de como as sociedades se comportavam em razão de seus costumes e tradições, hoje passou a ser a diretriz traçada pelo Estado, essa abstração que na verdade esconde os reais detentores do Poder, para revirar de cabeça para baixo esses mesmos costumes e tradições, sendo na verdade a correia de transmissão entre os que querem pôr em prática tal subversão e aqueles que são obrigatoriamente compelidos a seguir-lhes os passos.


Ao deixar a realidade de lado, o Direito passou a ser mero instrumento da revolução.