sexta-feira, 24 de agosto de 2012

História de um duelo - texto escrito há muito, muito tempo


I – Propedêutica


Sempre fui aficionado por duelo. Seja de que tipo for. Fascina-me o confronto entre dois homens, entre duas vontades, entre duas inteligências, entre dois sistemas.

Gosto tanto, que assisto a todos; inclusive a lutas, que sempre são tachadas pelos espíritos efeminados como excessivamente violentas. Mas aprecio principalmente os debates acadêmicos, as disputas intelectuais.

Acho que por isso tornei-me advogado, e um daqueles que gosta do litígio, que não se satisfaz com um bom acordo ainda que a demanda seja ruim. A experiência de duelar num processo é a mim muito prazerosa.

E, para iniciar o texto, não há como deixar de recordar um debate acadêmico que presenciei enquanto ainda estava na faculdade.

À minha frente, dois grandes Professores de Direito Penal: Luiz Flávio Gomes e Cezar Roberto Bitencourt.

O Professor Luiz Flávio Gomes, com aquele sotaque esquisito e cuja origem me é inteiramente desconhecida, iniciou a pregação de uma nova teoria do delito. À época, ele estava envolvido com a tal imputação objetiva, da qual até hoje não sei a utilidade.

Explicou.

Expôs.

Argumentou.

Prestei bastante atenção e sinceramente não notei por que tal teoria seria assim tão revolucionária. Na minha cabeça, tudo se resolvia ainda de acordo com a velha teoria do delito.

E, quando chegou a vez do Professor Cezar Bitencourt falar, ele simplesmente não disse outra coisa: esclareceu que a teoria da imputação objetiva surgira para resolver problemas que já estavam resolvidos, para ressuscitar defuntos que havia muito estavam sepultados.

Não entrarei em detalhes, porque não é desse duelo que quero tratar. Sei que daquele dia em diante minha vida de acadêmico mudou.

Simplesmente me tornei um reacionário.

Não aceito as teorias revolucionárias, sem antes conhecer bem aquelas que as precederam.

Ganhei um novo impulso esses dias. Leio ainda o livro Teoria Geral das Isenções Tributárias, do Professor Souto Maior Borges.

Ele, um dos maiores tributaristas do país, foi criticado por modernistas que simplesmente não entenderam suas colocações. Ou por modernistas que, sem conhecerem a doutrina de Pontes de Miranda, na qual o Professor Souto Maior Borges declaradamente sustenta suas posições, se metem a contestar algo que simplesmente desconhecem.

E, graças a esses debates de gigantes, ouso narrar um outro, em que me envolvi dia desses numa aula de Direito tributário.


II – O Professor Eurico de Santi (Golias)


No IBET, há duas sumidades: o Professor Paulo de Barros Carvalho, com suas modernas teorias da linguagem, e o Professor Eurico de Santi, que até hoje é conhecido e reconhecido como o mais brilhante jovem da PUC/SP.

Pois bem. Estava eu num sábado, quando um colega me ligou desesperado:

- Tiago, você não vai à aula do Eurico?

Quando ouvi aquilo, com a ênfase que meu colega colocou no Eurico, quase caí da cadeira. Imediatamente me vesti e fui à aula.

Cheguei lá e vi um rapaz ainda muito jovem, talvez oito ou nove anos mais velho que eu. Logo pensei que se tratasse de um gênio, de um Einstein do Direito tributário.

Trata-se, sim, de um gênio; mas não chega a ser um Einstein.

Logo o Professor Eurico começou a explicar a teoria da incidência tributária, tal qual estruturada por Paulo de Barros Carvalho.

Antes de esclarecer qualquer outra coisa, ressalto que sempre tive aversão aos livros do Professor Paulo; seja porque ele se coloca como alguém acima do bem e do mal; seja porque a malta de puxa-sacos que se formou na PUC/SP o elogia em demasia – o que provoca em mim, um reacionário, certa antipatia.

Mas vou ao que interessa.

O Professor Eurico então começou a discorrer sobre a incidência da norma jurídica, esclarecendo em primeiro lugar que ela não se dá automática e infalivelmente, como bem disseram Pontes de Miranda e Alfredo Augusto Becker.

Ainda de acordo com o Professor Eurico, que retrata com fidelidade a posição do Professor Paulo de Barros Carvalho, a incidência da norma jurídica confundia-se com sua aplicação. Ou seja: só haveria incidência se, e somente se, uma autoridade competente aplicasse a norma jurídica, porque a autoridade competente, ao aplicar a norma geral e abstrata prescrita num determinado diploma normativo, veicularia uma norma jurídica individual e concreta com a qual estabeleceria o liame obrigacional entre o contribuinte e o Fisco.

Logo que ouvi isso, não me contentei. Já havia lido tal teoria nos livros do Professor Paulo de Barros Carvalho, e com ela nunca assenti.

Perguntei, então:

- Mas, Professor Eurico, qual é a norma individual e concreta que obriga a autoridade competente a aplicar a norma geral e abstrata num determinado caso?

Um silêncio profundo tomou conta da sala de aula.

Pensei: Fiz a maior meleca da minha vida, nunca mais conseguirei um mestrado em qualquer canto do Brasil.

Como não entrarei no mestrado mesmo, então continuo a narração.

Note que a teoria da incidência desenvolvida pelo Professor Paulo de Barros Carvalho tinha um inocultável defeito lógico. A autoridade administrativa supostamente incumbida de aplicar a norma geral e abstrata não se encontrava obrigada a fazê-lo por uma norma individual e concreta, pois, para que estivesse obrigada a tanto, uma outra autoridade administrativa deveria aplicar a norma geral e abstrata para obrigá-la, e assim por diante, numa regressão ad infinitum.

Não sabendo como resolver o problema, que realmente é intransponível, o Professor Eurico então começou a falar sobre as qualidades da teoria que defendia, que era humanista et cetera e tal.

Ele novamente abriu um espaço, e eu de novo insisti em jogar minha futura carreira acadêmica no espaço.

Eu disse:

- Essa teoria, que contraria frontalmente aquela desenvolvida por Pontes de Miranda sobre a incidência das normas jurídicas, não explica nem a incidência de ICMS sobre a venda de um par de sapatos!

Ocasião em que fui atordoado com o seguinte contra-argumento:

- Mas o que é um sapato?

Mais uma vez, Davi venceu Golias.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Morrer e suceder–breve anotação sobre o livro de Giselda Hironaka

Depois de ler a agradabilíssima obra de Stendhal, resolvi expiar alguns pecados com o livro Morrer e suceder. Passado e presente da transmissão sucessória concorrente, escrito pela Profa. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka.

Leitura difícil, atravancada, que não rende, que não flui porque exaustivamente repetitiva, porque os argumentos se repetem incessante e insanamente de modo circular.

Sou teimoso. Terminarei o trabalho começado, com a certeza de que chegarei ao fim sem qualquer mácula, com a alma branca como a neve, pois realmente se trata duma cruz pesada com a qual remirei todos meus muitos pecados.

Além disso, a autora – que almeja desconstruir tudo aquilo que sabemos não só sobre o direito romano, mas sobre a própria Roma – faz algumas colocações que me parecem equivocadas.

Tratarei de uma delas aqui. Ei-la:

“Somos acostumados à ideia de vida após a morte, cuja origem é especificamente cristã. Os judeus não acreditavam nisso, e os romanos tampouco” (HIRONAKA, Gilselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e suceder. Passado e presente da transmissão sucessória concorrente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 132).

Como é que é?

Sobre os romanos, a autora diz o tempo todo que a religião deles não passava de uma religião cívica (o que seria uma religião cívica, ela não explica), que não teria relação com o Além etc. e tal. Não vou entrar em tal discussão, uma vez que o que é posto pela autora contraria frontalmente tudo – e quando digo tudo é tudo mesmo – o que os clássicos afirmaram sobre o povo romano, seu direito e religiosidade. Poderia citar Suetônio, Gibbon e Coulanges, mas vou poupar o apressado leitor desse lenga-lenga.

Vou tratar só da alegação de que os judeus não acreditavam na vida após a morte.

Para contrariá-la, há uma passagem bíblica que, por si só, demonstra a falsidade do argumento. E aqui não usarei a Bíblia porque fiel, mas porque no trecho que transcreverei se conta um fato ocorrido com o apóstolo Paulo que joga por terra a afirmação de que todos os judeus não criam numa vida depois da morte.

Eis a colocação de Paulo, que estava em julgamento por pregar a ressurreição de Cristo:

“Então Paulo, sabendo que alguns deles eram saduceus e os outros fariseus, bradou no Sinédrio: ‘Irmãos, sou fariseu, filho de fariseu. Estou sendo julgado por causa da minha esperança na ressurreição dos mortos!’" (Atos 23:6).

Vislumbra-se, do texto transcrito e de sua continuação (acessível a todos que têm uma Bíblia em casa), que havia dois partidos em combate: o dos saduceus, que realmente não criam na ressurreição, e o dos fariseus, ao qual pertenceu Paulo, que acreditavam na ressurreição dos mortos.

Se é fato que alguns judeus, os do partido saduceu, não acreditavam na vida depois da morte, é equivocadíssima a generalização feita pela autora, que quer abarcar todos os judeus nesse balaio.

Ora, os fariseus criam na ressurreição, de modo que afirmar que eles não aceitavam a vida depois da morte é algo irreal, que qualquer catequista de quinta categoria conseguiria repelir só com trechos bíblicos – os quais abundam e seguem em sentido contrário ao da autora.

Ao que parece, e digo isso sem terminar de ler o livro, sua autora quis reinventar a roda. Só que quer fazê-la quadrada.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Petição interessante


Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito de uma das Varas Cíveis de Campina Grande (PA)



























Pedido de tutela urgente!















Fulano de Tal, brasileiro, casado, empresário, inscrito no CPF com o nº XXX e portador da CI/RG nº XXX DPF/MS, com domicílio em Campo Grande (MS), na Rua dos Desesperados, nº 418, Bairro Jardim do Desassossego, e Beltrano, brasileiro, solteiro, empresário, inscrito no CPF com o nº XXX e portador da CI/RG nº XXX SSP/MS, com domicílio em Campo Grande (MS), na Rua Vinte e Cinco de Dezembro, nº 25, Centro, vêm, mui respeitosamente, por intermédio dos advogados que esta subscrevem, aforar ação contra o Condomínio Civil do Shopping da Lagoinha, inscrito no CNPJ com o nº XXX, com sede na Avenida dos Vigaristas, nº 157, Bairro Jardim Aclimação, aduzindo, para tanto, o seguinte:



Sumário



I – Síntese Necessária; II – A Res Sperata (A Ilegalidade da Cobrança); III – O Enriquecimento Ilícito e a Má-fé do Shopping; IV – O Dano Iminente; V – A Tutela Urgente; VI – Conclusão.



I – Síntese Necessária



1. Depois de muitas negociações, os demandantes – sócios da empresa Titio Nenê Comércio de Roupas e Acessórios Ltda.[1] – tomaram em locação do demandado os espaços comerciais discriminados como lojas 2.006/2.007, localizados no interior do Shopping Da Lagoinha.

Em tal ocasião, os demandantes firmaram com o demandado o contrato de locação elaborado por este[2], o qual contém inúmeros adendos, cartas e outros apetrechos que o transformam num monstrengo com mais artigos e parágrafos que o Código Civil.



2. Num desses adendos ao contrato de locação, assinado depois que os demandantes já se haviam instalado no Shopping Da Lagoinha[3], eles comprometeram-se a pagar antecipadamente ao demandado o valor de R$ 285.000,00 (duzentos e oitenta e cinco mil reais) a título de res sperata[4].

Não é preciso ressaltar que, se não assinassem tal adendo, pelo próprio Shopping Da Lagoinha denominado carta, os demandantes teriam de juntar suas malinhas e sair de lá. E isso depois que reorganizaram a loja Josefina!, transformando-a de deficitária em superavitária.

Note-se algo curioso, que bem denota a má-fé do demandado: primeiro, o Shopping Da Lagoinha permitiu que os demandantes ocupassem as lojas 2.006/2.007[5], para depois obrigá-los a assinar o compromisso de pagar antecipadamente a res sperata, dizendo tratar-se de contrato padrão, que não poderia ser alterado e etc. e tal[6].



3. Pois bem. Os demandantes, porque não encontraram qualquer razão que justificasse a manutenção da Fórum no Shopping Da Lagoinha, tendo em vista inclusive as inúmeras vezes nas quais os administradores do próprio Shopping deixaram de cumprir a palavra empenhada, resolveram cerrar as portas do seu empreendimento e de lá retirá-lo.



4. Curiosamente, eis que o demandado exige que os demandantes lhe paguem a res sperata, com correção, juros de mora e multa!

A res deixou de ser sperata e passou a ser exigida!



5. Atente-se para o detalhe: a res sperata – ou, em português, a coisa esperada – está sendo cobrada antecipadamente pelo Shopping Da Lagoinha, em razão de contrato de locação de espaço comercial que perduraria por no mínimo 60 (sessenta) meses[7], pois seu prazo de vigência iniciaria em 01.06.11 e terminaria em 31.05.16.

Só que, passados quase 14 (quatorze) meses, os locatários – ora demandantes – resolveram fechar a loja Fórum e pôr termo ao contrato de locação, em razão das várias vezes em que os representantes do demandado faltaram com os compromissos por eles assumidos.

Resta então a pergunta: se o contrato de locação será rompido, passados só 14 (quatorze) meses de sua entrada em vigor, por que os demandantes devem pagar a res sperata? Ou, ao menos, por que devem pagar toda a res sperata?



6. É claro que o pagamento tem uma razão de ser, uma contraprestação que o justifique, pois, caso não haja, verificar-se-á o enriquecimento ilícito da parte que recebe sem nada dar em troca.



7. Aqui no caso dos autos a questão é de fácil solução: o demandado cobra dos demandantes por algo que lhes não proporcionará, como se verá no próximo tópico.



II – A Res Sperata

(A Ilegalidade da Cobrança)



8. O próprio contrato de locação define a res sperata como “o valor pago pelo LOJISTA pelo direito de uso do espaço comercial locado da propriedade do EMPREENDEDOR[8].

Pela definição contratual, percebe-se que há algo errado, uma vez que o aluguel é a contraprestação paga pelo uso do espaço comercial da propriedade do demandado.

Ou seja: o aluguel pago religiosamente todos os meses pelos demandantes serve como contraprestação pelo uso do mesmo espaço que também justifica a cobrança da res sperata.

A confusão é grande! Até porque a locação de um só espaço dá azo à cobrança de duas coisas distintas: o aluguel e a res sperata.



9. De fato, as justificativas para que seja paga a tal res sperata não passam de uma barafunda de argumentos ininteligíveis[9] por meio da qual se quer burlar o art. 43, inc. I, da Lei 8.245/91. De acordo com esse dispositivo legal, constitui contravenção penal exigir, por motivos de locação ou sublocação, quantia ou valor além do aluguel e encargos permitidos[10].

E quais são os valores que o proprietário do imóvel pode exigir do locatário[11]?

Ora, aqueles discriminados pelo art. 23 da mesma Lei 8.245/91, dentre os quais não há a tal res sperata[12].



10. Diante do exposto, os demandantes tornam a perguntar: por que haveriam de pagar a res sperata, se a cobrança dela não encontra amparo na legislação que rege a matéria[13]?



11. Só que, ainda que se considere legal a exigência da res sperata, deve-se repetir o raciocínio óbvio, para que dúvida alguma permaneça.

Se a res sperata haveria de ser paga pois os demandantes ocupariam as lojas 2.006/2.007 pelo prazo mínimo de 60 (sessenta) meses[14], por que os demandantes teriam de pagá-la toda e antecipadamente se o contrato terminará com 14 (quatorze) meses de vigência?



12. Ora, é claro que há aí algo despropositado, desproporcional mesmo, pois a exigência para que os demandantes paguem imediatamente a res sperata constituiria, em verdade, afronta à boa-fé contratual, uma vez que permitiria o enriquecimento ilícito do Shopping Da Lagoinha.



III – O Enriquecimento Ilícito e a Má-Fé do Shopping



13. Nos contratos comutativos, como é o caso sobre o qual se debruça agora, uma parte contratante dá algo em troca de outra coisa equivalente. Ou, nas palavras do sempre preciso Orlando Gomes[15]:



“Nos contratos comutativos, a relação entre vantagem e sacrifício é subjetivamente equivalente, havendo certeza quanto às prestações.”



14. Aqui, o Shopping Da Lagoinha busca receber a res sperata (ainda que seja tida como legal tal cobrança) antecipadamente, mesmo ciente de que o contrato de locação terminará agora, em 31 de agosto de 2012, depois de viger só pelo prazo de 14 (quatorze) meses.

Ou seja: para o Shopping Da Lagoinha, não há correlação entre a vantagem (receber a res sperata como se as lojas tomadas em locação o fossem pelo prazo mínimo de sessenta meses) e o sacrifício (deixar de locar os espaços pelo prazo exíguo de quatorze meses).



15. Até para aqueles que não veem ilegalidade na cobrança da res sperata a situação dos autos despontaria como o cúmulo do absurdo.

De fato, como ressaltou Cláudio Santos[16], em obra doutrinária dedicada ao contrato de locação de espaço em shopping center, na qual cita à exaustão Modesto Carvalhosa, há de haver correspondência entre o valor cobrado a título de res sperata e o tempo do contrato de locação.

Eis as palavras do ministro Cláudio Santos:



“No entanto, o percentual do empreendedor no fundo de comércio não é cedido gratuitamente ao lojista, nem é cedido por tempo indeterminado.

“Ao contrário, tal cessão, como foi visto, tem caráter oneroso, sendo efetuada mediante o pagamento da res sperata; tem ainda a cessão desse percentual do fundo um prazo determinado que corresponde ao prazo de duração do contrato de locação.”



Noutro versar: a cessão do fundo de comércio do shopping corresponde necessariamente ao prazo de duração do contrato de locação; e, por decorrência, a res sperata, que nada mais é do que o valor desembolsado como contraprestação a essa cessão do fundo de comércio, também há de corresponder a tal prazo de duração.



16. Logo, por força do raciocínio exposto e muito bem trilhado por Modesto Carvalhosa e Cláudio Santos, o Shopping Da Lagoinha não poderia cobrar dos demandantes o valor total da res sperata, mas uma quantia proporcional àquela pela qual realmente perdurará o contrato de locação (quatorze meses).



17. De acordo com isso, simples regra de três bastaria para verificar qual é o real valor devido pelos demandantes, se é que se pode considerá-los devedores de algum.

Pela matemática, então, os demandantes devem ao Shopping Da Lagoinha a singela quantia de R$ 33.250,00 (trinta e três mil duzentos e cinquenta reais); quantia correspondente à res sperata, multiplicada pelos meses de efetiva vigência do contrato de locação (quatorze meses), dividida pelo tempo de duração do contrato de locação (cento e vinte meses, lembrando que o contrato de locação poderia ser renovado compulsoriamente só pela simples vontade dos demandantes).



18. E isso por uma razão bastante singela: se o valor da res sperata levou em conta, quando da sua fixação, o prazo de 60 (sessenta) meses, prazo que poderia se duplicado pela simples vontade dos demandantes, mas o contrato de locação perdurará pelo prazo de 14 (quatorze) meses, é claro que tal valor há de ser reduzido, para que se mantenha a comutativa originária do contrato de locação de espaço no Shopping Da Lagoinha.



19. Ora, a redução da res sperata é medida que se impõe de acordo com o princípio da boa-fé; o qual, de seu turno, veda, proíbe e inibe o enriquecimento ilícito.

Concessa maxima venia, poder-se-ia tranquilamente aplicar ao caso o art. 413 do Código Civil, segundo o qual a penalidade imposta ao devedor em mora deve ser reduzida, se seu montante for manifestamente excessivo.



20. De fato, não seria correto, justo ou razoável exigir que os demandantes paguem a res sperata como se o contrato de locação houvesse de perdurar no mínimo pelo prazo de 60 (sessenta), quando em veras perdurará por 14 (quatorze) meses. Mesmo porque o Shopping receberia a res sperata dos demandantes e do próximo locatário, de modo que se enriqueceria indevidamente.



21. Aceitar a exigência da res sperata, em seu valor total, seria então consentir com o enriquecimento ilícito do Shopping Da Lagoinha; enriquecimento que derivaria de sua má-fé contratual, pois, em audiência, os demandantes demonstrarão que o contrato assinado não corresponde às tratativas feitas pelas partes[17].



22. Em frente do explanado, ainda que se entenda válida a cobrança da res sperata, tem-se que ela só poderia ser cobrada proporcionalmente ao prazo de locação do espaço do Shopping Da Lagoinha; ou seja: teria de ser cobrada proporcionalmente aos 14 (quatorze) meses em que os demandantes permaneceram em tais espaços.



IV – O Dano Iminente



23. A fim de pressionar os demandantes, o Shopping Da Lagoinha resolveu agir sórdida e inescrupulosamente.

Agora, envia carta aos fiadores do contrato de locação, informando que, caso o valor da res sperata não fosse pago até o dia 15 de agosto de 2012, encaminharia a informação do inadimplemento ao SERASA.



24. É claro que a inclusão do nome dos supostos devedores em qualquer cadastro, quando pendente a discussão que eles põem agora, é uma maneira nada sutil de forçá-los a pagar o que não devem.



25. Tem-se, então, o risco iminente de dano à imagem e ao nome dos demandantes e daqueles que os afiançaram; os quais, se se reconhecer legítima a dívida da qual tratam agora, pagá-lá-ão indubitavelmente, pois são pessoas conhecidas e reconhecidas pela sociedade graças à seriedade com a qual conduzem seus negócios.



26. Não é preciso estender os argumentos para esclarecer que a inclusão dos devedores em qualquer cadastro de inadimplentes, seja SERASA ou outro que porventura haja por aí, causar-lhes-á dano de monta.



27. Logo, há risco de que o Shopping Da Lagoinha lhes cause dano iminente, o qual só poderá ser coarctado por ordem judicial.



V – A Tutela Urgente



28. Em primeiro lugar, cumpre relembrar a lição do Padre Manuel Bernardes[18], que, no Século XVII, recomendou:



“Importa que o espírito do príncipe e do magistrado tenha alguma porção ígnea, que o incline a fazer o seu ofício não frouxamente, mas com prontidão e viveza, porque a caridade, que, pelo que toca ao bem próprio, há-de ser paciente: Charitas patiens est, pelo que toca ao bem do próximo, há-de participar às vezes algum tanto de impaciência: Interdum (disse S. Bernardo a Eugênio papa) impatientem esse, probabilius.”



29. A análise do caso, tal qual descrita agora, demonstra por a mais b que a dívida dos demandantes não existe, ou que é infinitamente inferior à exigida pelo Shopping Da Lagoinha.



30. Diante duma situação assim, em que a própria saúde financeira dos demandantes se encontra ameaçada, uma vez que são comerciantes e vivem do crédito que lhes seria tolhido caso estivessem inscritos no SERASA, seria correto penalizá-los por anos?

Desenganadamente, a resposta é não.



31. Não se podem olvidar, agora, as lições de Luiz Guilherme Marinoni[19] sobre o ônus do tempo no processo:



“Pretender distribuir o tempo implica em vê-lo como ônus, e essa compreensão exige a prévia constatação de que ele não pode ser considerado algo neutro ou indiferente ao autor e ao réu. Se o autor precisa de tempo para receber o bem da vida que persegue, é lógico que o processo – evidentemente que no caso de sentença de procedência – será tanto mais efetivo quanto mais rápido.”



32. Há, como bem esclarece o aludido Mestre, direito constitucionalmente assegurado à tutela efetiva dos direitos (CF, art. 5.º, inc. LXXVIII) – o que impõe a celeridade do processo.



33. No caso, repita-se, o Shopping Da Lagoinha age com extremada má-fé, pois tenta de todas as formas, per fas et per nefas, obrigar os demandantes a lhe pagar o que estes não devem.

Rememore-se, pois, mais uma lição do Prof. Luiz Guilherme Marinoni[20], segundo a qual:



“O processo não pode prejudicar o autor que tem razão.”



E segue o aludido Mestre[21]:



“Quanto mais demorado é o processo, mais ele se presta a premiar a defesa abusiva como fonte de vantagens econômicas, fazendo parecer mais conveniente esperar a decisão desfavorável do que cumprir a obrigação pontualmente.”



34. Diante da verossimilitude dos argumentos dos demandantes, não há como fazer com que quem tem razão, ao menos aparentemente, se submeta a todo o procedimento para, só ao seu final, ver-se beneficiado com a ordem para que seu nome não seja manchado com a indelével pecha de mau pagador.

Se se admitisse isso, estar-se-ia diante de caso exemplar do mau funcionamento do processo civil que não proporcionaria, no tempo devido, a cada um aquilo que é seu[22].



35. Ademais, o perigo na demora é evidente e não precisa ser mais esclarecido.



VI – Conclusão



36. Diante do exposto, os demandantes pedem lhes seja concedida a tutela urgente, por meio da qual se determine que o Shopping Da Lagoinha não os inclua em qualquer cadastro de maus pagadores, até o término deste processo. Ou, se tal inclusão já foi concretizada, que se determine a imediata exclusão dos nomes dos demandantes de qualquer cadastro de maus pagadores, como, por exemplo, o SERASA.



37. Ao fim e ao cabo, os demandantes pedem:

a) seja reconhecida e declarada a anulabilidade da dívida por eles contraída graças ao dolo do Shopping Da Lagoinha, nos termos do art. 145 do Código Civil;

ou

b) seja declarada a inexigibilidade da res sperata, haja vista que sua cobrança não encontra amparo jurídico;

ou

c) seja reduzido o valor da res sperata proporcionalmente ao real prazo de duração do contrato de locação de espaço, declarando-se que ele é de R$ 33.250,00 (trinta e três mil duzentos e cinquenta reais).



38. Se qualquer dos pedidos acima for atendido, os demandantes querem seja o Shopping Da Lagoinha condenado a pagar custas e honorários de sucumbência.



39. Requer, por fim:

a) a citação do demandado;

e

b) a produção de provas por todos os meios admitidos em direito;

e

c) que as publicações sejam feitas exclusivamente em nome de Tiago Bana Franco, OAB/MS 9.454, sob pena de nulidade.



40. Dá à causa o valor de R$ 335.309,64 (trezentos e trinta e cinco mil trezentos e nove reais e sessenta e quatro centavos).



Campo Grande (MS), 17 de agosto de 2012.





TIAGO BANA FRANCO
                OAB/MS 9.454                 





[1] Pessoa jurídica devidamente inscrita no CNPJ com o nº XXX, com sede em Campina Grande(PA), na Avenida dos Vigaristas, nº 157, lojas 2.006/2.007, Shopping Da Lagoinha, Jardim Aclimação.
[2] Ressalve-se que se trata de verdadeiro contrato de adesão, pois os demandantes não puderam discutir uma só linha do que lhes foi imposto pelo Shopping.
[3] A pressa do Shopping Da Lagoinha era tanta que o contrato de locação de seu espaço foi travado com os sócios da empresa RB Comércio de Roupas e Acessórios Ltda., e não com a sociedade.
[4] Contrato:
“2. Além dos aluguéis e demais encargos da locação previstos no referido instrumento contratual, considerando as vantagens que a locação no SHOPPING nos proporcionará, permitindo-nos usufruir, durante o prazo de contratual avençado, dos benefícios resultantes da respectiva estrutura organizacional, bem como, participar, durante o mesmo período, do fundo de comércio atinente ao SHOPPING, que reconhecemos ser da titularidade de seus empreendedores, assumimos a obrigação de lhes pagar, antecipadamente, a título de Res Sperata, em moeda corrente, o valor de R$ 285.000,00 (duzentos e oitenta e cinco mil reais).
“2.1. O valor supramencionado será pago em uma única parcela, vencendo em 12 (doze) meses após a assinatura desta Carta, ou seja, dia 01/06/2012, impreterivelmente, devendo esta parcela, ser representada por 01 (uma) nota promissória vinculada ao presente instrumento, emitida por nós nesta data e entregues a V.Sas. em caráter pro solvendo.”
[5] Os demandantes iniciaram longa negociação com os antigos revendedores da marca Fórum e, com a tolerância do Shopping Da Lagoinha, começaram suas atividades lá antes mesmo de firmar qualquer contrato de locação.
Depois que os demandantes se instalaram definitivamente, veio o Shopping, obrigando-os (os demandantes) a assinar os contratos e adendos que bem quis.
[6] Eis o famoso conto da carochinha!
[7] Como se trata de locação de imóvel comercial, os demandantes teriam direito à renovação compulsória do contrato, o que implica dizer que teriam mais 60 (sessenta) meses além do prazo originalmente previsto.
[8] Contrato de locação, anexo II, cláusula primeira, inciso 6.
[9] A mesma opinião, expressa em termos mais polidos, parece ter Modesto Carvalhosa:
“Esse pagamento, conhecido como res sperata, tem sua natureza jurídica controvertida, entendendo alguns tratar-se de reserva ou garantia de locação; outros considerando-a como retribuição de estudo de marketing, cota do custo do empreendimento ou, ainda, contrapartida da cessão do fundo de comércio que será formado pelo empreendedor” (Carvalhosa, Modesto. Considerações sobre relações jurídicas em shopping center. In Shopping center: questões jurídicas: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1991).
[10] Lei 8.245/91:
“Art. 43. Constitui contravenção penal, punível com prisão simples de cinco dias a seis meses ou multa de três a doze meses do valor do último aluguel atualizado, revertida em favor do locatário:
“I - exigir, por motivo de locação ou sublocação, quantia ou valor além do aluguel e encargos permitidos;”
[11] Sobre ser o contrato de que se trata agora uma espécie de locação, não há dúvida.
Caio Mário da Silva Pereira assim assevera:
“A propósito da caracterização jurídica deste contrato reina certa controvérsia. A mim me parece que se trata de um vero e próprio contrato de locação. O que tem levado a pô-lo em dúvida tem sido imiscuir, na sua tipologia, elementos acidentais” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Shopping centers – organização econômica e disciplina jurídica. In TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson (coord.). Coleção doutrinas essenciais: obrigações e contratos. Revista dos Tribunais: São Paulo, v. V, p. 618).
[12] Lei 8.245/91:
“Art. 23. O locatário é obrigado a:
“I – pagar pontualmente o aluguel e os encargos da locação, legal ou contratualmente exigíveis, no prazo estipulado ou, em sua falta, até o sexto dia útil do mês seguinte ao vencido, no imóvel locado, quando outro local não tiver sido indicado no contrato;
“II – servir-se do imóvel para o uso convencionado ou presumido, compatível com a natureza deste e com o fim a que se destina, devendo tratá-lo com o mesmo cuidado como se fosse seu;
“III – restituir o imóvel, finda a locação, no estado em que o recebeu, salvo as deteriorações decorrentes do seu uso normal;
“IV – levar imediatamente ao conhecimento do locador o surgimento de qualquer dano ou defeito cuja reparação a este incumba, bem como as eventuais turbações de terceiros;
“V – realizar a imediata reparação dos danos verificados no imóvel, ou nas suas instalações, provocadas por si, seus dependentes, familiares, visitantes ou prepostos;
“VI – não modificar a forma interna ou externa do imóvel sem o consentimento prévio e por escrito do locador;
“VII – entregar imediatamente ao locador os documentos de cobrança de tributos e encargos condominiais, bem como qualquer intimação, multa ou exigência de autoridade pública, ainda que dirigida a ele, locatário;
“VIII – pagar as despesas de telefone e de consumo de força, luz e gás, água e esgoto;
“IX – permitir a vistoria do imóvel pelo locador ou por seu mandatário, mediante combinação prévia de dia e hora, bem como admitir que seja o mesmo visitado e examinado por terceiros, na hipótese prevista no art. 27;
“X – cumprir integralmente a convenção de condomínio e os regulamentos internos;
“XI – pagar o prêmio do seguro de fiança;
“XII – pagar as despesas ordinárias de condomínio.”
[13] Cláudio Santos, na obra citada, diz textualmente que a res sperata não é outra coisa senão as velhas luvas. Cita, inclusive, em seu socorro a opinião de Pestana de Aguiar.
E, recentemente, firmou-se o entendimento de que a cobrança das luvas são ilegais, como noticia Mário Cerveira Filho:
“É ilegal a cobrança de luvas na locação comercial (Ap. 1121.216, Capital, 4ª C. do 2º TACSP, j. 9-3-81, rel. Loctário Otaviano, v.u., RT 552/160).
“...
“Desde a Lei 1.521/51, em vigor, até a atual Lei do Inquilinato a cobrança de luvas é considerada contravenção penal” (Shopping center. Direitos dos lojistas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 92).
[14] Repita-se: porque se trata de locação de imóvel comercial, os demandantes teriam direito à renovação compulsória do contrato, o que implica dizer que teriam mais 60 (sessenta) meses além do prazo originalmente previsto.
[15] GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 88.
[16] SANTOS, Cláudio. A locação de espaço em shopping center. In TEPEDINO, Gustavo e FACHIN, Luiz Edson (coord.). Coleção doutrinas essenciais: obrigações e contratos. Revista dos Tribunais: São Paulo, v. V, p. 661/662.
[17] Em verdade, e isso será mostrado por meio de prova testemunhal, os demandantes caíram no famoso, velho, mas eficaz conto do vigário.
Quando se comprometeram a pagar antecipadamente a res sperata, os demandantes tiveram a garantia verbal do Sr. José Irineu de que não na pagariam do modo como contratado, mas negociariam esse montante a fim de que permanecessem no Shopping, etc. e tal.
Houve, então, e eis aqui alegação feita em nota de rodapé, mas nem por isso menos importante, dolo do Shopping Da Lagoinha, que induziu em erro os demandantes, de modo a tornar nulo o negócio jurídico celebrado, de acordo com o art. 145 do Código Civil, cuja redação segue:
“Art. 145. São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa.”
[18] BERNARDES, Manuel. Nova Floresta. Organização de João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 108.
[19] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 183.
[20] MARINONI, Luis Guilherme. Tutela Antecipatória e Julgamento Antecipado. Parte Incontroversa da Demanda. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 139.
[21] Idem
[22] Não há como olvidar, aqui, a máxima sempre citada de Chiovenda, segundo a qual “il processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha un diritto tutto quello e proprio quello ch’egli ha diritto di conseguire” (in PISANI, Andrea Proto. Apuunti sulla tutela da condanna. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1978, p. 1.105.).