quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Alguns aspectos tributários da incorporação às avessas


Sumário

 

i. A incorporação inversa; ii. A interpretação equivocada da Receita Federal; iii. Conclusão

 

i. A incorporação inversa

 

1. Em razão de ser inadmissível que a sociedade incorporadora aproveite-se dos prejuízos fiscais da sociedade incorporada[1], em muitos planejamentos tributários a sociedade deficitária é quem acaba incorporando a superavitária, a fim de fazer com que os prejuízos fiscais daquela sejam aproveitados para se compensar com aquilo que é devido por esta.

 

2. Ocorre que, em situações assim, a Receita Federal do Brasil habitualmente tem lavrado autos de infração com suporte no argumento segundo o qual não haveria justificativa econômica capaz de estribar a incorporação da sociedade lucrativa por aquela que não dá lucro.

 

3. Em regra, esses autos de infração têm sido mantidos pelos Tribunais administrativos, caso a incorporação inversa (ou às avessas, como também é conhecida) não tenha justificativa outra senão a diminuição da carga tributária, pois se entenderia que, se a única aspiração fosse a de reduzir a carga tributária, o negócio seria simulado[2].

 

4. De fato, os Tribunais administrativos incumbidos de julgar a matéria vêm exigindo que a incorporação inversa passe pelo business purpose test, pois só se realmente houvesse sólida justificativa econômica é que tal operação não se caracterizaria como negócio jurídico simulado. E, se entrevista simulação, a Receita Federal do Brasil teria em seu benefício o art. 116, parágrafo único; dispositivo legal que lhe permitiria desconsiderar o negócio simulado para tributar aquilo que seria o negócio dissimulado[3].

 

5. Ocorre, no entanto, que a argumentação desenvolvida pela Receita Federal do Brasil peca por duas razões singelas: (a) não há lei no ordenamento jurídico nacional que impeça a incorporação às avessas; (b) e não há lei que exija o tal propósito econômico como justificativa de qualquer ato entre sociedades que resolvem unir-se por meio de incorporação.

 

ii. A interpretação equivocada da Receita Federal

 

6. Quando o Direito tributário vale-se de conceito de Direito privado, sem lhe alterar o sentido, há-se de tomar tal conceito com o mesmo conteúdo que detém no seu domínio de origem, por força do art. 110 do Código Tributário Nacional[4].

 

7. Logo, e porque o Direito tributário valeu-se do conceito de simulação sem modificar seu sentido, dá-se o negócio simulado quando:

 

“I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

“II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

“III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.”

 

8. A incorporação às avessas não se subsume a qualquer das hipóteses discriminadas pelo art. 167 do Código Civil, uma vez que por meio dela não se confere direito à pessoa diversa daquela à qual realmente se confere, nela não há declaração que não seja verdadeira e não há necessidade de fazê-la com qualquer instrumento antedatado ou pós-datado.

 

9. Com esse panorama em mente, pergunta-se: como é simulada a incorporação se é o retrato fiel daquilo a que aspiraram as partes contratantes?

 

10. Além disso, a exigência de que a incorporação inversa tenha propósito negocial, ou seja, que não tenha por escopo único reduzir a carga tributária das sociedades nela envolvidas, não encontra respaldo no ordenamento jurídico.

 

11. Se de fato no Direito norte-americano há razão capaz de justificar tal exigência, criação pretoriana[5], aqui no Brasil as coisas são um tantinho diferentes, pois em nosso país é permitido que as pessoas se organizem da maneira como quiserem, desde que isso não seja vedado; vedado por lei aprovada pelo parlamento, e não por mera interpretação dos Tribunais.

 

12. Como lei não há que impeça a incorporação inversa, encontra-se ela dentro da liberdade concedida às pessoas de organizarem-se (e organizarem suas atividades econômicas) da maneira como lhes aprouver, ainda que tenham o único e legítimo propósito de economizar tributos.

 

13. Por qualquer ângulo, vislumbra-se que a interpretação dada à incorporação inversa pela Receita Federal, as exigências que faz para aceitá-la, não encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.

 

iii. Conclusão

 

13. Em frente do exposto, fácil é concluir que a incorporação às avessas poderá, sim, ser usada como medida de elisão fiscal, ainda que tenha isso como seu único objetivo.



[1] Note-se, por favor, o teor do art. 33 do Decreto-lei 2.341/87, incorporado ao Regulamento do Imposto de Renda (art. 514):
“Art. 33. A pessoa jurídica sucessora por incorporação, fusão ou cisão não poderá compensar prejuízos fiscais da sucedida.
“Parágrafo único. No caso de cisão parcial, a pessoa jurídica cindida poderá compensar os seus próprios prejuízos, proporcionalmente à parcela remanescente do patrimônio líquido.”
[2] A incorporação às avessas tem sido aceita em determinadas situações, como, por exemplo, desde que as empresas envolvidas sejam operativas e que a incorporação se faça com o propósito de buscar maior eficiência das operações. Assim se pronunciou a Sétima Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes no julgamento do Processo 10675.003870/2002-21, em que funcionou como Relator Natanael Martins.
[3] Código Tributário Nacional:
“Art. 116.
“Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”
[4] Código Tributário Nacional:
“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
[5] Caso Gregory v. Helvering, julgado pela Suprema Corte em 1935.

domingo, 20 de outubro de 2013

Aos doutores da lei


Quando vos olho,
Sinto pena de mim.
Tomara que não sejais
Os juízes condenados
Que me hão de julgar
Em meu triste fim.

Um quê pesaroso,
Há sempre em vossos rostos,
Dolorosos e enlutados.
Parece que não rides,
Mas imagino que não,
Não há de ser
Pela minha alma, a razão
De estais a tristemente
Chorar por toda a eternidade,
Eternizando a dor, de não
Ser eu uma unânime santidade.

Peço-vos para que não choreis,
Se por mim haveis chorado,
Pois ao menos nessa terra,
Cometi o impropério,
O desatino de não vos escolher,
Oh, Doutores da Lei,
Os tutores d`minha alma,
A alma de um esfarrapado.

sábado, 19 de outubro de 2013

Um júri complicado


Ao meu amigo José Marcos Maksoud Jr.

Sentei-me na cadeira do barbeiro. Para mim, um dia normal.  Tão normal que resolvi que meus parcos cabelos poderiam ser tolhidos. Não sei por que cargas d`água, acostumei-me com vitórias. E também com derrotas. Com as últimas, demorei-me um tantinho mais. Hoje posso afirmar que nutro santa indiferença por ambas, a despeito de lutar renhidamente pela vitória enquanto puder entrevê-la, ainda que num horizonte remoto. Mas depois de decidido o processo, decidido está. E ponto final.

Só que essa indiferença não me impede de reconhecer uma boa atuação. De fato, num júri, ao contrário do que pensa o jurista que mantém seu bumbum calejado de tanto sentar-se com os olhos voltados para os processos cíveis, o acusado entra condenado, por mais inocente que seja. Então absolver um réu é algo milagroso de per si. E absolver alguém acusado de propositadamente atropelar desafeto seu diante de dois policiais, e quando digo diante quero dizer literalmente diante, é um milagre que só posso atribuir à ajuda de meus dois intercessores prediletos e nunca olvidados: Nossa Senhora de Fátima e Padre Pio. É a história desse júri que quero contar brevemente, escamoteando os argumentos que usei, pois poderão ser repisados num futuro nem tão distante.

A Segunda Vara do Tribunal de Júri de Campo Grande realizou mutirão de julgamentos, o qual se estendeu por aproximadamente seis meses. Como a Defensoria Pública não tinha condições de atuar em todas as sessões, alguns advogados foram convidados para defender os réus que ocasionalmente estavam sem quem os representasse. E eu fui chamado para atuar no caso do atropelador.

A acusação era particularmente simples. Houve uma briga de trânsito envolvendo dois carros e duas motos. De acordo com a denúncia, os dois carros trancavam a pista de rolamento quando um dos motociclistas que vinha por ela resolveu pedir passagem. Foi o que bastou para que o motorista do carro da direita desse passagem para depois fechar o motoqueiro pidão de tal modo que fizesse com que ele se chocasse com a traseira desse automóvel e caísse. O outro motoqueiro, tomando para si as dores, iniciou ligeira briga com o motorista do carro que fechara seu colega. Essa briga não resultara em grande coisa e o motociclista brigão dirigira-se aos dois policiais que cuidavam de seu amigo caído, quando foi atropelado propositadamente por aquele que guiava o outro carro, o que, no início do episódio, vinha pela pista da esquerda.

O atropelamento ocorreu na frente dos dois policiais e de uma terceira pessoa, só que nenhum destes conseguiu apropriar-se da placa do carro, o que foi feito por um terceiro motociclista que não quis identificar-se depois de informá-la ao assustado policial; assustado porque também quase voou pelos ares, uma vez que, no momento do atropelamento, estava a metro e meio da vítima.

Meu cliente era acusado de ser o autor dessa tentativa de homicídio, então. A placa anotada era a do seu carro.

Estudei o processo. Li-o todo. E sinceramente não sabia o que falaria na sessão de julgamento. Confiei em Deus. Simples assim. E deu certo. No júri, a acusação faz suas alegações em primeiro lugar. Depois vem a defesa. Comecei a prestar atenção na promotora que habilidosamente conduzia a acusação. Seu trabalho me parecia fácil, demasiadamente fácil. E vinha sendo bem executado. Só que em determinado momento, ela afirmou que não havia prova contundente que demonstrasse a briga que precedera o atropelamento. Foi nessa hora que tive minha ideia.

A defesa, que estava perdida, passou a ganhar corpo em minha mente, e isso por uma razão: se não houve a briga precedente, então não existia motivo para que meu cliente atropelasse a vítima. Mas o que eu faria com o motociclista que, ao passar pelo local do atropelamento no momento em que acontecia, havia anotado a placa do carro? Só tinha uma saída: desqualificá-lo em razão de não haver dado a cara para bater, pois é muito fácil acusar alguém, talvez até um desafeto, sem identificar-se de maneira que permita ser confrontado. O depoimento anônimo não pode, e realmente não pode, servir como prova capaz de ensejar a condenação de quem quer seja. E, ao fim e ao cabo, era esse depoimento anônimo a única prova que colocava meu cliente na cena do crime.

Desenvolvi a tese criada ali, no plenário do júri, iniciando por algumas histórias que não guardavam aparentemente qualquer relação com o processo, mas, por meio das quais, devagarinho incutia na mente dos jurados as dúvidas que eu mesmo tinha. E, jogando com essas dúvidas, consegui um resultado apertado: quatro votos contra três. Quatro jurados consideraram não haver prova de que era meu cliente o atropelador.

Sinceramente creio que meu cliente realmente não foi o autor da tentativa de homicídio de que o acusavam. Mas que a situação dele era difícil, quase impossível, isso era.