2. O problema
todo, como bem destacou Frederic Bastiat[1]
em meados do século XIX, é o seguinte: ou a ordem jurídica é justa ou é
solidária, uma vez que a solidariedade imposta pelo Estado necessariamente
implica a expropriação do patrimônio de quem tem e sua transferência a quem não
o tem[2];
transferência sobre a qual o próprio Estado cobra corretagem altíssima para realizá-la,
azeitando com esse dinheiro a máquina burocrática que funcionará a cada dia
mais e melhor, ao fim e ao cabo para que haja novas transferências patrimoniais,
até que não exista quem detenha patrimônio a ser expropriado – situação que se
não amolda ao conceito de justiça de maneira alguma, mas adéqua-se à vaga
conotação que tem o substantivo justiça
acompanhado do adjetivo social, como
apregoado há cinquenta anos ou mais na velha e outrora linda capital cubana.
3. Percebe-se
claramente que, por meio de ideias sempre relacionadas à solidariedade e ao bem
comum, destroem-se dia após dia a segurança dos brasileiros e daqueles que, de
uma forma ou outra, relacionam-se com o Brasil. Um exemplo: o conceito indeterminado
de função social da propriedade hoje
serve para justificar a invasão e a destruição de bens imóveis[3];
os quais, de acordo com os próprios invasores, haveriam mesmo de ser invadidos,
porque não cumpririam sua função social, num evidente raciocínio circular que
não esclarece o que se quer dizer quando se refere à função social da propriedade[4].
4. Outro
exemplo que não haveria de ficar de fora é o princípio que atualmente rege –
também, mas não só – o imposto de renda, segundo o qual tal exação haverá de
ser progressiva (CF, art. 153, parágrafo segundo, inciso I). O que isso
significa? Que o Estado se apropriará para si da parcela que ele próprio
considerar excessiva na renda das pessoas, com alíquotas que crescem à medida
que aumenta esse excesso, sob o pretexto de que o distribuirá aos
desfavorecidos, tornando assim a sociedade menos desigual e mais solidária.
Ocorre que os próprios Karl Marx e Friedrich Engels[5]
escreveram que um dos caminhos para a implantação do socialismo seria a
tributação progressiva!
Se os pais
do que jocosamente se denomina socialismo científico disseram que a implantação
de tal mal haveria de ser feita por meio de impostos progressivos, quem poderá
deles discordar?
5. E é assim
que, passo a passo, o ordenamento jurídico brasileiro segue sua trilha em
direção ao agigantamento estatal, que leva automaticamente ao inchaço da
máquina pública e à crescente concentração dos meios de produção nas mãos
burocráticas de um ou outro chefe de repartição.
E a concentração dos poderes político e econômico nas mesmas pessoas, que é o
que naturalmente ocorre quando o Estado intervém na atividade empresarial,
exercendo-a ou dirigindo-a (sempre em favor de seus apaniguados, claro!), é a
característica mais marcante de qualquer regime totalitário.
6. Ocorre
que, por incrível que pareça, o problema maior não é esse; mas a maneira com a
qual o Poder Judiciário vem imiscuindo-se nas relações jurídicas, às mais das
vezes sem qualquer respaldo legal, para atribuir às partes que considera
bafejadas pela sorte obrigações que não existem, deveres que essas partes não
têm, criando para elas regras de suas próprias cabeças, a fim de, com o
dinheiro delas, tornar o mundo um lugar mais legal para se viver.
7. Eis aí o
fenômeno do ativismo judicial, o qual trouxe, traz e trará infindáveis
problemas à sociedade brasileira, que vem caindo no poço sem fundo da
insegurança jurídica[6].
8. E é nesse
contexto, em que os juízes não se contentam em simplesmente cumprir as leis,
mas, na busca insana de tonarem-se protagonistas de um novo e solidário mundo, tentam
de todos os modos destruir a última coisa que ainda resta do que seria o esboço
brasileiro de uma economia de mercado: a responsabilidade limitada das
sociedades empresariais que para si próprias escolheram esse regime[7][8].
[1] La ley. Madri: Alianza Editorial, 2005.
[2] “Aquí choco
con la preocupación más popular de nuestra época. Se desea, no sólo que la Ley
sea justa, sino que sea también filantrópica. No basta con que garantice a todo
ciudadano el libre e inofensivo ejercicio de sus facultades aplicadas a su
desenvolvimiento físico, intelectual y moral; sino que se le exige que derrame
directamente el bienestar, la moralidad y la instrucción sobre el país. Éste es
el lado agradable del socialismo.
“Pero, lo repito, estas dos tareas que se quiere
atribuir a la Ley se contradicen; es menester optar entre una y otra; el
ciudadano no puede ser y no ser libre al mismo tiempo. Monsieur de Lamartine me
escribía en cierta ocasión: ‘Vuestra doctrina no es más que la mitad de mi
programa; vos os quedáis en la libertad, y yo llego hasta la fraternidad’. Y yo
le contesté: ‘La segunda mitad de vuestro programa destruirá la primera’. Y en
efecto, yo no puedo en modo alguno separar la palabra fraternidad de la palabra voluntaria.
No puedo concebir la fraternidad obligada por
la ley, sin que quede destruida por
la ley la libertad, y hollada por la
ley la justicia.” (BASTIAT, Frederic. Ob.
cit., p. 75).
[3] Não é demais
lembrar, num tempo em que a própria Igreja Católica parece apoiar grupos
paramilitares travestidos de movimentos sociais, as palavras do Papa Leão XIII:
“Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a
estabelecer por todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a
inviolabilidade da propriedade particular.” (Encíclica Rerum Novarum, parágrafo 7º. Texto disponível no seguinte endereço
eletrônico:
http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html).
[4] À balha,
traz-se o discurso pronunciado por Carlos Lacerda diante da Comissão de
Constituição e Justiça em maio de 1957, cujo trecho que interessa segue
transcrito:
“Venho a esta comissão como testemunha de um tempo de
subversão de valores, na qual – como na sátira de George Orwell, fala-se em
liberdade para matá-la, em democracia para destruí-la, em legalidade para
negá-la na sua própria essência. As palavras adquirem um sentido oposto ao seu
significado; e os homens afetam sentimentos nobres para justificar, na
perplexidade das ideias, a política dos mais baixos instintos.”
[5] “Em 1848,
Karl Marx e Engels propuseram abertamente a intensa progressão do imposto de
renda como uma das medidas para o proletariado usar, após o primeiro estágio da
revolução, para garantir a supremacia política, tomar todo o capital da
burguesia e centralizar os instrumentos de produção nas mãos do estado. John
Stuart Mill descreveu a progressão do imposto como pura forma de roubo. Ao que
parece, estava correto.” (CONSTANTINO, Rodrigo. Economia do indivíduo – o legado da Escola Austríaca. Texto
disponível no seguinte endereço eletrônico:
http://www.mises.org.br/files/literature/Economia%20do%20Individuo%20-%20WEB.pdf).
[6] FRANCO,
Tiago Bana. Ativismo judicial: a
desarrazoada busca do razoável. Revista do Instituto dos Advogados de São
Paulo, v. 16, p. 59-86, 2013.
[7] Não se
desconhece a existência de sociedades empresariais em que os sócios respondem
com seus patrimônios pessoais pelas dívidas sociais, como é o caso, por
exemplo, das sociedades simples (CC, art. 997 e seguintes). Só que não é esse o
foco do problema a ser abordado aqui, uma vez que se tratará com exclusividade
das empresas constituídas de modo que a responsabilidade dos seus sócios
limite-se ao capital social.
[8] SALAMA,
Bruno Meyerhof. O fim da responsabilidade
limitada no Brasil. São Paulo: Malheiros,
2014.
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