sexta-feira, 26 de junho de 2015

Tutte le estrade portano a Havana

1. Vivem-se dias curiosos. Hoje, todos os caminhos levam a Havana, como outrora levaram a Roma. Há um movimento contínuo tendente a colocar sempre uma pitada de solidariedade nas relações jurídicas. Na própria Constituição Federal encontra-se um dos objetivos da ordem jurídica brasileira atual: construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3, inc. I), por meio da erradicação da pobreza e das desigualdades sociais (art. 3, inc. III).

2. O problema todo, como bem destacou Frederic Bastiat[1] em meados do século XIX, é o seguinte: ou a ordem jurídica é justa ou é solidária, uma vez que a solidariedade imposta pelo Estado necessariamente implica a expropriação do patrimônio de quem tem e sua transferência a quem não o tem[2]; transferência sobre a qual o próprio Estado cobra corretagem altíssima para realizá-la, azeitando com esse dinheiro a máquina burocrática que funcionará a cada dia mais e melhor, ao fim e ao cabo para que haja novas transferências patrimoniais, até que não exista quem detenha patrimônio a ser expropriado – situação que se não amolda ao conceito de justiça de maneira alguma, mas adéqua-se à vaga conotação que tem o substantivo justiça acompanhado do adjetivo social, como apregoado há cinquenta anos ou mais na velha e outrora linda capital cubana.

3. Percebe-se claramente que, por meio de ideias sempre relacionadas à solidariedade e ao bem comum, destroem-se dia após dia a segurança dos brasileiros e daqueles que, de uma forma ou outra, relacionam-se com o Brasil. Um exemplo: o conceito indeterminado de função social da propriedade hoje serve para justificar a invasão e a destruição de bens imóveis[3]; os quais, de acordo com os próprios invasores, haveriam mesmo de ser invadidos, porque não cumpririam sua função social, num evidente raciocínio circular que não esclarece o que se quer dizer quando se refere à função social da propriedade[4].

4. Outro exemplo que não haveria de ficar de fora é o princípio que atualmente rege – também, mas não só – o imposto de renda, segundo o qual tal exação haverá de ser progressiva (CF, art. 153, parágrafo segundo, inciso I). O que isso significa? Que o Estado se apropriará para si da parcela que ele próprio considerar excessiva na renda das pessoas, com alíquotas que crescem à medida que aumenta esse excesso, sob o pretexto de que o distribuirá aos desfavorecidos, tornando assim a sociedade menos desigual e mais solidária. Ocorre que os próprios Karl Marx e Friedrich Engels[5] escreveram que um dos caminhos para a implantação do socialismo seria a tributação progressiva!

Se os pais do que jocosamente se denomina socialismo científico disseram que a implantação de tal mal haveria de ser feita por meio de impostos progressivos, quem poderá deles discordar?

5. E é assim que, passo a passo, o ordenamento jurídico brasileiro segue sua trilha em direção ao agigantamento estatal, que leva automaticamente ao inchaço da máquina pública e à crescente concentração dos meios de produção nas mãos burocráticas de um ou outro chefe de repartição. E a concentração dos poderes político e econômico nas mesmas pessoas, que é o que naturalmente ocorre quando o Estado intervém na atividade empresarial, exercendo-a ou dirigindo-a (sempre em favor de seus apaniguados, claro!), é a característica mais marcante de qualquer regime totalitário.

6. Ocorre que, por incrível que pareça, o problema maior não é esse; mas a maneira com a qual o Poder Judiciário vem imiscuindo-se nas relações jurídicas, às mais das vezes sem qualquer respaldo legal, para atribuir às partes que considera bafejadas pela sorte obrigações que não existem, deveres que essas partes não têm, criando para elas regras de suas próprias cabeças, a fim de, com o dinheiro delas, tornar o mundo um lugar mais legal para se viver.

7. Eis aí o fenômeno do ativismo judicial, o qual trouxe, traz e trará infindáveis problemas à sociedade brasileira, que vem caindo no poço sem fundo da insegurança jurídica[6].

8. E é nesse contexto, em que os juízes não se contentam em simplesmente cumprir as leis, mas, na busca insana de tonarem-se protagonistas de um novo e solidário mundo, tentam de todos os modos destruir a última coisa que ainda resta do que seria o esboço brasileiro de uma economia de mercado: a responsabilidade limitada das sociedades empresariais que para si próprias escolheram esse regime[7][8].




[1] La ley. Madri: Alianza Editorial, 2005.
[2] “Aquí choco con la preocupación más popular de nuestra época. Se desea, no sólo que la Ley sea justa, sino que sea también filantrópica. No basta con que garantice a todo ciudadano el libre e inofensivo ejercicio de sus facultades aplicadas a su desenvolvimiento físico, intelectual y moral; sino que se le exige que derrame directamente el bienestar, la moralidad y la instrucción sobre el país. Éste es el lado agradable del socialismo.
“Pero, lo repito, estas dos tareas que se quiere atribuir a la Ley se contradicen; es menester optar entre una y otra; el ciudadano no puede ser y no ser libre al mismo tiempo. Monsieur de Lamartine me escribía en cierta ocasión: ‘Vuestra doctrina no es más que la mitad de mi programa; vos os quedáis en la libertad, y yo llego hasta la fraternidad’. Y yo le contesté: ‘La segunda mitad de vuestro programa destruirá la primera’. Y en efecto, yo no puedo en modo alguno separar la palabra fraternidad de la palabra voluntaria. No puedo concebir la fraternidad obligada por la ley, sin que quede destruida por la ley la libertad, y hollada por la ley la justicia.” (BASTIAT, Frederic. Ob. cit., p. 75).
[3] Não é demais lembrar, num tempo em que a própria Igreja Católica parece apoiar grupos paramilitares travestidos de movimentos sociais, as palavras do Papa Leão XIII:
“Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer por todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular.” (Encíclica Rerum Novarum, parágrafo 7º. Texto disponível no seguinte endereço eletrônico: http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html).
[4] À balha, traz-se o discurso pronunciado por Carlos Lacerda diante da Comissão de Constituição e Justiça em maio de 1957, cujo trecho que interessa segue transcrito:
“Venho a esta comissão como testemunha de um tempo de subversão de valores, na qual – como na sátira de George Orwell, fala-se em liberdade para matá-la, em democracia para destruí-la, em legalidade para negá-la na sua própria essência. As palavras adquirem um sentido oposto ao seu significado; e os homens afetam sentimentos nobres para justificar, na perplexidade das ideias, a política dos mais baixos instintos.”
[5] “Em 1848, Karl Marx e Engels propuseram abertamente a intensa progressão do imposto de renda como uma das medidas para o proletariado usar, após o primeiro estágio da revolução, para garantir a supremacia política, tomar todo o capital da burguesia e centralizar os instrumentos de produção nas mãos do estado. John Stuart Mill descreveu a progressão do imposto como pura forma de roubo. Ao que parece, estava correto.” (CONSTANTINO, Rodrigo. Economia do indivíduo – o legado da Escola Austríaca. Texto disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.mises.org.br/files/literature/Economia%20do%20Individuo%20-%20WEB.pdf).
[6] FRANCO, Tiago Bana. Ativismo judicial: a desarrazoada busca do razoável. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, v. 16, p. 59-86, 2013.
[7] Não se desconhece a existência de sociedades empresariais em que os sócios respondem com seus patrimônios pessoais pelas dívidas sociais, como é o caso, por exemplo, das sociedades simples (CC, art. 997 e seguintes). Só que não é esse o foco do problema a ser abordado aqui, uma vez que se tratará com exclusividade das empresas constituídas de modo que a responsabilidade dos seus sócios limite-se ao capital social.
[8] SALAMA, Bruno Meyerhof. O fim da responsabilidade limitada no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2014.

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