É claro que a ideia não é minha, mas de N. Steinhardt, que,
em seu Diário da Felicidade, a trouxe
e a explicou, mesclando-a com sua incrível biografia. Só que de tão valiosa,
resolvi sintetizá-la, evitando misturá-la com minha porca vida, pois desta
são poucas coisas que merecem registro; e não porque sejam boas nem extremamente más, mas simplesmente porque sensaborona.
Falo do trecho em que Steinhardt relembra que Dom Quixote, ao
ver um bando de mequetrefes numa taverna, conversa com eles como se fossem
verdadeiros aristocratas, pessoas sumamente importantes, e que a taverna não
seria a espelunca que aparentava, mas, ao contrário, verdadeiro castelo, para explicar em seguida que essa visão quixotesca do homem é a mesma de Deus, como se Deus
nos visse a todos como aristocratas, e o mundo que fez, como um castelo.
E de fato Deus nos vê importantíssimos, barões, condes,
duques e reis, ainda que porventura trajemos andrajos e trapos, porque, como
Ele nos fez à Sua imagem e semelhança, como Ele próprio nos disse para sermos
deuses, perfeitos, nós temos a potência de realizar-nos, realizando o próprio
projeto divino que encarnamos, projeto único que individualmente a nós mesmos
compete pôr em andamento e fazê-lo chegar a bom termo.
Se nós estamos sujos, imundos com nossos pecados, e não
queremos limpar-nos, abandonando a ideia de que poderemos ser perfeitos como (e
porque) Deus é perfeito, é em razão de termos perdido a capacidade de nos
olharmos como filhos de Deus, como verdadeiros aristocratas de um mundo que
está por vir, como pessoas destinadas aos céus, como filhos que daqui a pouco,
num breve e curtíssimo espaço de tempo, verão a Deus face a face; ocasião em
que os que se portam como aristocratas serão recebidos no castelo do Senhor,
pois amigos Seus, mas os que se contentam com suas próprias misérias serão
arremessados ao castigo eterno, onde haverá choro e ranger de dentes.
Quixote não seria um simples maluco, pois. Ao revés.
Mostra-se como a personificação do verdadeiro cristão, que vê seus irmãos com a
nobreza que cada um deles tem, e eis aí o sinal distintivo do aristocrata, porque todos são filhos do mesmo Deus e amados por Ele, porque irmãos, ainda
que relapsos, mesmo que pródigos, posto que perdidos por perderem-se achando que o
mundo não é o verdadeiro castelo que é; lugar que só consegue ser visto por
Quixotes ou Príncipes Míchikins, personagem quixotesco de Dostoievski n’O Idiota.
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