sábado, 18 de agosto de 2018

O Brasil e os Corleones

Há no filme O poderoso chefão uma passagem em que Dom Corleone explica a razão que o leva a viver de modo tão perigoso, como capo de uma família mafiosa: ele diz que simplesmente se recusa a obedecer aos homens que estão no poder, pois qualquer deles não é melhor do que ele próprio, Dom Corleone. Assassino. Corrupto. Todos são. Inclusive e principalmente os políticos, policiais, juízes e promotores - os quais ele mantém sempre em sua longa folha de pagamentos. Corleone de fato dá a entender que viver à margem do sistema é uma opção de quem tem capacidade para criar seu próprio mundo, cujas regras são por ele determinadas, por ele impostas e por ele sancionadas aquando alguém ousa não cumpri-las. Viver dentro do sistema seria uma capitulação, para pessoas como ele, pois consistiria em obedecer àqueles homens que em nada dele se diferenciam, exceto na sorte que tiveram de nascer e crescer em determinado local e dentro de certa família.

Eis um pensamento interessantíssimo, fascinante mesmo, pois todos temos dentro de nós ao menos um pouco de Raskolnikov. Daí porque a trilogia da família Corleone fez e faz tanto sucesso.

O que interessa agora é que mesmo quando o poder é exercido de forma individual e personalíssima, como no caso da família criminosa pela qual se torce ao assistir à trilogia, ele só o é porque envolto numa mística. Toda a história da máfia italiana funda-se na idéia de que a irmandade criminosa, e a família é o organismo em que a lealdade há de ser o amálgama que une aqueles que a integram, na ideia de que a irmandade criminosa é formada com base na lealdade ancestral e sanguínea que os italianos (no caso dos Corleone, os sicilianos) teriam uns para com os outros. Lealdade que nenhum homem teria com o Estado, mas só com outros seres de carne e osso. Lealdade que o Estado jamais poderia cobrar, muito menos a preço de sangue.

A mim me parece que a mística do poder é inerente ao seu exercício, portanto. Mesmo nos casos de sociedades criminosas, criadas e mantidas à margem do sistema oficial, o poder necessita de uma mística para que seja exercido. E principalmente para que seja obedecido!

E, a despeito de discordar de Georges Burdeau sobre a origem idealizada do Estado, porque, ao contrário dele, creio que o Estado seja o arranjo natural de qualquer sociedade humana, com ele concordo ao afirmar que a mística do poder é o que o torna tolerável.

Mas o que seria tal mística?

Ainda com Georges Burdeau, o Estado é a forma pela qual o grupo se unifica submetendo-se ao direito, sendo a ideia do direito decorrente da consideração de uma ordem social desejável, regida por certa representação do futuro.

Cada sociedade teria, além de um passado comum (normalmente envolto em misticismos com os quais são retradas histórias reais ou fantasiosas com o que se cria o senso de unidade), o desejo de determinada ordem social. É a ideia de um passado comum e um desejado futuro que une as pessoas em torno do poder, seja ele estatal ou não. O futuro desejado pelas famílias mafiosas seria o de serem cada vez mais ricas e poderosas. Como é o caso das organizações criminosas que crescem no Brasil de hoje, independentemente de serem integradas por políticos ou por presidiários. Ou pelos dois simultaneamente.

E por quê? Qual é a razão pela qual brotam em chão brasileiro tantas e tão variadas sociedades paralelas que competem entre si e com o próprio Estado? Ou, em outras palavras, por que o Brasil se esfarela a olhos regalados?

Não há aqui a vontade de responder a tão intrincada pergunta, mas só um insight.

No Brasil de hoje, em primeiro lugar, não existe um real sentimento de unidade nacional. Todos aqui querem ser negros, italianos, libaneses, espanhois e japoneses. Ninguém quer ser brasileiro. Ao contrário do que ocorria no início do Séc. XX, por exemplo. E isso porque não há um passado recheado de misticismos como o que envolve a criação dos Estados Unidos, por exemplo. Ou da França. Ou da Rússia. Ou da Cosa Nostra. Não porque faltem histórias que poderiam dar ensejo à criação da mítica que uniria o povo brasileiro, porque as há aos borbotões; mas porque propositadamente ridicularizamos nossa história, humilhando-nos a nós próprios, esquecendo nossos heróis e desfazendo-nos de nossa herança cultural, como se fosse maléfica. Situação semelhante pela qual agora passam vários países europeus.

Depois, e isso me parece o mais importante, porque no Brasil não há no horizonte daqueles que exercem o poder estatal o desejo de uma ordem social que se coadune à ordem social querida pelo povo. Há um distanciamento gigantesco entre o que quer a elite e ao que aspira o povo brasileiro. Não existe um destino comum.

A elite quer consumir drogas à vontade. Quer o aborto. Busca a liberdade sexual de uma maneira desenfreada e descontrolada. Ao contrário do que quer o povo, em que ainda se encontram arraigados pensamentos muito mais conservadores - a despeito dos milhões gastos para que se adeque aos interesses da elite.

E é justamente nesse vácuo que há entre o Brasil querido pela elite iluminada e aquele buscado pelo povão que nascem e crescem as sociedade paralelas, como, por exemplo, as criminosas. Ninguém obdece as regras estatais porque no imaginário das pessoas não há um país que seja nosso. Há pedaços de Brasil que têm de ser dominados, surrupiados, roubados e espoliados.

Porque não há unidade de destino, não se sabe qual é o futuro do Brasil pelo qual se aspira, formam-se sociedades à margem do sistema, com ele competindo para tomar determinados feudos. Às vezes à base da persuasão. Às vezes à força do dinheiro, seja ele oriundo da corrupção ou das drogas.


Neste exato momento seria importantíssimo que o Brasil se unisse em torno do seu glorioso passado e de um destino comum, para que as pessoas pudessem de novo tornar a se submeter de bom grado às regras do próprio Brasil, visto em sua inteireza. E não percebido como uma sociedade fatiada que tem de ser dominada pedaço por pedaço pelos muitos Corleones que há e se criam por aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário