sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Notas sobre a conversa entre Sandel e Barroso

Depois de assistir ao bate-papo entre Luís Roberto Barroso e Michael Sandel, resolvi ler o livro cujas comemorações pelos dez anos de sua publicação no Brasil haviam ensejado esse encontro virtual: Justiça!


E o que realmente chama a atenção nos argumentos de Sandel - postos sem meias-palavras na conversa que teve com Barroso, mas colocados de modo mais elaborado no livro - é a maneira com a qual ele deixa de lado a ideia de John Rawls de que o Estado liberal, para sê-lo, haveria de abrir mão das discussões sobre o que é o bem comum para servir como mero mediador entre as personagens que disputam seus pontos de vista no octógono social.


Sem dúvida que é uma guinada entre os pensadores americanos, principalmente aqueles mais influenciados pelo contratualismo, uma vez que, tal qual concebido, o Estado liberal jamais disputaria ou haveria de disputar qualquer argumento de fundo, limitando-se a permitir que cada pessoa viva sua vida buscando a felicidade da maneira como entende ser a mais adequada. O bem comum, nessa perspectiva, seria a manutenção da ordem capaz de permitir que cada indivíduo viva de acordo com suas crenças pessoais, sem que isso degringole numa desordem.


A missão do Estado liberal, bem se vê, beira o impossível: manter a ordem num ambiente social caótico e desagregador!


Justamente porque inviável seria organizar uma sociedade extremamente individualista, desordenada porque sem rumo definido, desagregada pelos vários blocos de interesses diversos que se formaram em seu interior, muitos dos quais artificialmente criados para cindir as pessoas em antagonismos bobos, é que Michael Sandel parece querer tornar a fazer com que o Estado busque algo que não seja a mera mediação entre os interesses individuais, aspire a que o Estado tenha uma verdadeira ordem social, bens e objetivos que sejam comuns a todos os membros da pólis.



Ainda que a ordem social que muitos gostariam de ter não seja a mesma de Sandel, pelo menos ele se dispôs a discutir isso sem subterfúgios retóricos, como aqueles usados por Barroso.


Para ficar no exemplo mais marcante da conversa entre os dois: o aborto!


Barroso colocou que é pessoalmente contra o aborto, mas que seria uma injustiça criminalizá-lo, como ocorre no Brasil, pois o Estado não poderia impor a moral dominante àqueles que dela discordam, de modo que caberia ao Estado simplesmente permitir que quem quisesse fazê-lo o fizesse livremente.


Por seu turno, Sandel defendeu de viva voz que, na discussão judicial do aborto, dever-se-ia analisar quando a vida tem início: se no momento da concepção, como defende a Igreja Católica, ou em algum átimo depois dela.


Claro que o argumento de Barroso, sob a roupagem liberal de John Rawls, não passa de um subterfúgio retórico apto a permitir que tal prática venha a ser não só aceita mas incentivada pelo Estado, sem que a discussão de fundo seja de fato enfrentada. Enquanto Sandel corajosamente se dispõe a encarar o problema em sua inteireza para saber se a prática do aborto constitui ou não o assassinato de um ser vivo, pois essa é realmente a questão a ser debatida.


Sandel defende que a vida não começa na concepção, não explicando quando ela tem início; mas só a valentia que tem de não ocultar o problema debaixo do tapete do bom-mocismo do Estado liberal já é algo que deve ser louvado.


E não é o aborto em si mesmo considerado sobre o que escrevo. Limito-me a felicitar essa mudança no pensamento moderno, uma verdadeira ruptura nele, alteração por meio da qual a busca pelo bem comum parece retornar à discussão dos que realmente pensam sobre a Justiça; pois o confronto franco de ideias, sem peias nem melindres, permitirá que a sociedade se unifique em torno daquilo que realmente considera bom, una-se sobre objetivos que haveriam de ser os mesmos de todos os que querem compartilhar não só uma história comum, mas também o mesmo futuro juntos.


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