Há algo estranho no mundo. Muito estranho. E não me refiro
aos protestos em São Paulo ou na Turquia. Refiro-me à cisão que o pensamento
moderno busca fazer entre fé e razão, distinção que ganha corpo no ocidente,
uma vez que de um lado estão os céticos filhos do
evolucionismo/marxismo/freudismo, e doutra banda se espalham as seitas
protestantes cujos seguidores parecem crer mais na magia de algum oráculo do
que em Deus.
Mas será que existe realmente oposição entre fé e razão?
Ao contrário do que brandem por aí os iluministas tardios, a
fé – e doravante entenderei como fé a fé católica, pois pessoalmente só conheço
a fé católica e nenhuma outra mais – não há qualquer oposição razoável entre a
fé e a razão.
Para se chegar a essa conclusão, basta retornar um pouquinho
no tempo e perceber que o catolicismo sempre buscou a fundamentação de Deus de
duas formas distintas, mas complementares.
Em primeiro lugar, pela experiência daqueles que viram,
conviveram com Jesus e foram por Ele eleitos para levar o evangelho a todos os
povos. Trata-se, portanto, de uma experiência do real, daquilo que de fato
aconteceu, daquilo que os apóstolos e demais seguidores de Jesus presenciaram e
deixaram para a Igreja por meio da Tradição oral e escrita passada de geração a
geração. Por isso se afirma, com razão, que o catolicismo não é a religião de
um livro, a Bíblia, mas a religião de Jesus.
Só que a experiência pessoal dos primeiros cristãos não foi
suficiente para sanar a gana das gerações que se seguiram e que se confrontavam
diariamente com as várias correntes filosóficas que permeavam o mundo antigo.
Aliás, por meio da filosofia, os homens sempre buscaram saber qual é a razão da
própria vida, ou, noutras palavras: por que existo ao invés do nada? E os
cristãos jamais deixaram de pensar em Deus, de tentar alcançá-lo também por
meio da razão, a despeito de terem-no conhecido pessoalmente. E aqueles que se superaram nesta busca foram, sem dúvida,
Agostinho e Tomás de Aquino. Só que não é deles que tratarei aqui, por falta de
espaço e por incompetência minha.
Por meio da filosofia cristã, todo o raciocínio platônico e
aristotélico foi trazido para explicar e justificar a existência de Deus, a
ponto de o próprio Cardeal Joseph Ratzinger chegar a afirmar que “o
cristianismo tem seus precursores e sua preparação interna no racionalismo
filosófico, não nas religiões (antigas)”.
Trago à balha o seguinte trecho de Ratzinger, também extraído
do artigo denominado A pretensão da
verdade posta em dúvida, por meio do qual ele deixa claro seu pensamento
(ao menos no tempo em que ainda era Cardeal):
“Segundo Agostinho e a tradição bíblica, para ele decisiva, o
cristianismo não se baseia nas imagens e ideias míticas, cuja justificação se
encontra, afinal, em sua utilidade política, mas faz referencia a esse aspecto
divino que a análise racional da realidade pode perceber. Em outras palavras:
Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as ideias filosóficas sobre o
fundamento do mundo formadas em suas diversas variantes na filosofia antiga.”
Ora, é claro que a busca de Deus por meio da razão dá ao cristianismo
a primazia sobre todas as religiões, uma vez que a justificativa racional é
capaz de ser levada a qualquer ser humano, coisa muito diferente do que se dava
e ainda se dá com as outras crenças.
Diante desse quadro, tratar o cristianismo com desdém em
razão de sua suposta falta de racionalidade demonstra, só e tão-somente,
desconhecimento do objeto em análise, haja vista que a racionalidade é
exatamente o que distingue o cristianismo das outras religiões, a racionalidade
é a diferença específica que diferencia aquela que tem a si própria
como a religio vera das outras.
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