Ao meu amigo José Marcos Maksoud Jr.
Sentei-me na cadeira do barbeiro. Para mim, um dia normal. Tão normal que resolvi que meus parcos cabelos
poderiam ser tolhidos. Não sei por que cargas d`água, acostumei-me com vitórias.
E também com derrotas. Com as últimas, demorei-me um tantinho mais. Hoje posso
afirmar que nutro santa indiferença por ambas, a despeito de lutar renhidamente
pela vitória enquanto puder entrevê-la, ainda que num horizonte remoto. Mas
depois de decidido o processo, decidido está. E ponto final.
Só que essa indiferença não me impede de reconhecer uma boa atuação. De fato, num júri, ao contrário do que pensa o jurista que
mantém seu bumbum calejado de tanto sentar-se com os olhos voltados para os
processos cíveis, o acusado entra condenado, por mais inocente que seja. Então
absolver um réu é algo milagroso de per si. E absolver alguém acusado de
propositadamente atropelar desafeto seu diante de dois policiais, e quando digo
diante quero dizer literalmente diante, é um milagre que só posso atribuir à
ajuda de meus dois intercessores prediletos e nunca olvidados: Nossa Senhora de
Fátima e Padre Pio. É a história desse júri que quero contar brevemente,
escamoteando os argumentos que usei, pois poderão ser repisados num futuro nem
tão distante.
A Segunda Vara do Tribunal de Júri de Campo Grande realizou
mutirão de julgamentos, o qual se estendeu por aproximadamente seis meses. Como
a Defensoria Pública não tinha condições de atuar em todas as sessões, alguns advogados foram convidados para defender os réus que
ocasionalmente estavam sem quem os representasse. E eu fui chamado para atuar no
caso do atropelador.
A acusação era particularmente simples. Houve uma briga de
trânsito envolvendo dois carros e duas motos. De acordo com a denúncia, os dois
carros trancavam a pista de rolamento quando um dos motociclistas que vinha por
ela resolveu pedir passagem. Foi o que bastou para que o motorista do carro da
direita desse passagem para depois fechar o motoqueiro pidão de tal modo que
fizesse com que ele se chocasse com a traseira desse automóvel e caísse. O
outro motoqueiro, tomando para si as dores, iniciou ligeira briga com o
motorista do carro que fechara seu colega. Essa briga não resultara em grande
coisa e o motociclista brigão dirigira-se aos dois policiais que cuidavam de seu
amigo caído, quando foi atropelado propositadamente por aquele que guiava o
outro carro, o que, no início do episódio, vinha pela pista da esquerda.
O atropelamento ocorreu na frente dos dois policiais e de uma
terceira pessoa, só que nenhum destes conseguiu apropriar-se da placa do carro,
o que foi feito por um terceiro motociclista que não quis identificar-se depois
de informá-la ao assustado policial; assustado porque também quase voou pelos
ares, uma vez que, no momento do atropelamento, estava a metro e meio da vítima.
Meu cliente era acusado de ser o autor dessa tentativa de
homicídio, então. A placa anotada era a do seu carro.
Estudei o processo. Li-o todo. E sinceramente não sabia o que
falaria na sessão de julgamento. Confiei em Deus. Simples assim. E deu certo.
No júri, a acusação faz suas alegações em primeiro lugar. Depois vem a defesa.
Comecei a prestar atenção na promotora que habilidosamente conduzia a acusação.
Seu trabalho me parecia fácil, demasiadamente fácil. E vinha sendo bem
executado. Só que em determinado momento, ela afirmou que não havia prova
contundente que demonstrasse a briga que precedera o atropelamento. Foi nessa
hora que tive minha ideia.
A defesa, que estava perdida, passou a ganhar corpo em minha
mente, e isso por uma razão: se não houve a briga precedente, então não existia
motivo para que meu cliente atropelasse a vítima. Mas o que eu faria com o
motociclista que, ao passar pelo local do atropelamento no momento em que
acontecia, havia anotado a placa do carro? Só tinha uma saída: desqualificá-lo em
razão de não haver dado a cara para bater, pois é muito fácil acusar alguém,
talvez até um desafeto, sem identificar-se de maneira que permita ser confrontado.
O depoimento anônimo não pode, e realmente não pode, servir como prova capaz de
ensejar a condenação de quem quer seja. E, ao fim e ao cabo, era esse
depoimento anônimo a única prova que colocava meu cliente na cena do crime.
Desenvolvi a tese criada ali, no plenário do júri, iniciando
por algumas histórias que não guardavam aparentemente qualquer relação com o
processo, mas, por meio das quais, devagarinho incutia na mente dos jurados as
dúvidas que eu mesmo tinha. E, jogando com essas dúvidas, consegui um resultado
apertado: quatro votos contra três. Quatro jurados consideraram não haver prova
de que era meu cliente o atropelador.
Sinceramente creio que meu cliente realmente não foi o autor
da tentativa de homicídio de que o acusavam. Mas que a situação dele era
difícil, quase impossível, isso era.
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