sexta-feira, 24 de agosto de 2012

História de um duelo - texto escrito há muito, muito tempo


I – Propedêutica


Sempre fui aficionado por duelo. Seja de que tipo for. Fascina-me o confronto entre dois homens, entre duas vontades, entre duas inteligências, entre dois sistemas.

Gosto tanto, que assisto a todos; inclusive a lutas, que sempre são tachadas pelos espíritos efeminados como excessivamente violentas. Mas aprecio principalmente os debates acadêmicos, as disputas intelectuais.

Acho que por isso tornei-me advogado, e um daqueles que gosta do litígio, que não se satisfaz com um bom acordo ainda que a demanda seja ruim. A experiência de duelar num processo é a mim muito prazerosa.

E, para iniciar o texto, não há como deixar de recordar um debate acadêmico que presenciei enquanto ainda estava na faculdade.

À minha frente, dois grandes Professores de Direito Penal: Luiz Flávio Gomes e Cezar Roberto Bitencourt.

O Professor Luiz Flávio Gomes, com aquele sotaque esquisito e cuja origem me é inteiramente desconhecida, iniciou a pregação de uma nova teoria do delito. À época, ele estava envolvido com a tal imputação objetiva, da qual até hoje não sei a utilidade.

Explicou.

Expôs.

Argumentou.

Prestei bastante atenção e sinceramente não notei por que tal teoria seria assim tão revolucionária. Na minha cabeça, tudo se resolvia ainda de acordo com a velha teoria do delito.

E, quando chegou a vez do Professor Cezar Bitencourt falar, ele simplesmente não disse outra coisa: esclareceu que a teoria da imputação objetiva surgira para resolver problemas que já estavam resolvidos, para ressuscitar defuntos que havia muito estavam sepultados.

Não entrarei em detalhes, porque não é desse duelo que quero tratar. Sei que daquele dia em diante minha vida de acadêmico mudou.

Simplesmente me tornei um reacionário.

Não aceito as teorias revolucionárias, sem antes conhecer bem aquelas que as precederam.

Ganhei um novo impulso esses dias. Leio ainda o livro Teoria Geral das Isenções Tributárias, do Professor Souto Maior Borges.

Ele, um dos maiores tributaristas do país, foi criticado por modernistas que simplesmente não entenderam suas colocações. Ou por modernistas que, sem conhecerem a doutrina de Pontes de Miranda, na qual o Professor Souto Maior Borges declaradamente sustenta suas posições, se metem a contestar algo que simplesmente desconhecem.

E, graças a esses debates de gigantes, ouso narrar um outro, em que me envolvi dia desses numa aula de Direito tributário.


II – O Professor Eurico de Santi (Golias)


No IBET, há duas sumidades: o Professor Paulo de Barros Carvalho, com suas modernas teorias da linguagem, e o Professor Eurico de Santi, que até hoje é conhecido e reconhecido como o mais brilhante jovem da PUC/SP.

Pois bem. Estava eu num sábado, quando um colega me ligou desesperado:

- Tiago, você não vai à aula do Eurico?

Quando ouvi aquilo, com a ênfase que meu colega colocou no Eurico, quase caí da cadeira. Imediatamente me vesti e fui à aula.

Cheguei lá e vi um rapaz ainda muito jovem, talvez oito ou nove anos mais velho que eu. Logo pensei que se tratasse de um gênio, de um Einstein do Direito tributário.

Trata-se, sim, de um gênio; mas não chega a ser um Einstein.

Logo o Professor Eurico começou a explicar a teoria da incidência tributária, tal qual estruturada por Paulo de Barros Carvalho.

Antes de esclarecer qualquer outra coisa, ressalto que sempre tive aversão aos livros do Professor Paulo; seja porque ele se coloca como alguém acima do bem e do mal; seja porque a malta de puxa-sacos que se formou na PUC/SP o elogia em demasia – o que provoca em mim, um reacionário, certa antipatia.

Mas vou ao que interessa.

O Professor Eurico então começou a discorrer sobre a incidência da norma jurídica, esclarecendo em primeiro lugar que ela não se dá automática e infalivelmente, como bem disseram Pontes de Miranda e Alfredo Augusto Becker.

Ainda de acordo com o Professor Eurico, que retrata com fidelidade a posição do Professor Paulo de Barros Carvalho, a incidência da norma jurídica confundia-se com sua aplicação. Ou seja: só haveria incidência se, e somente se, uma autoridade competente aplicasse a norma jurídica, porque a autoridade competente, ao aplicar a norma geral e abstrata prescrita num determinado diploma normativo, veicularia uma norma jurídica individual e concreta com a qual estabeleceria o liame obrigacional entre o contribuinte e o Fisco.

Logo que ouvi isso, não me contentei. Já havia lido tal teoria nos livros do Professor Paulo de Barros Carvalho, e com ela nunca assenti.

Perguntei, então:

- Mas, Professor Eurico, qual é a norma individual e concreta que obriga a autoridade competente a aplicar a norma geral e abstrata num determinado caso?

Um silêncio profundo tomou conta da sala de aula.

Pensei: Fiz a maior meleca da minha vida, nunca mais conseguirei um mestrado em qualquer canto do Brasil.

Como não entrarei no mestrado mesmo, então continuo a narração.

Note que a teoria da incidência desenvolvida pelo Professor Paulo de Barros Carvalho tinha um inocultável defeito lógico. A autoridade administrativa supostamente incumbida de aplicar a norma geral e abstrata não se encontrava obrigada a fazê-lo por uma norma individual e concreta, pois, para que estivesse obrigada a tanto, uma outra autoridade administrativa deveria aplicar a norma geral e abstrata para obrigá-la, e assim por diante, numa regressão ad infinitum.

Não sabendo como resolver o problema, que realmente é intransponível, o Professor Eurico então começou a falar sobre as qualidades da teoria que defendia, que era humanista et cetera e tal.

Ele novamente abriu um espaço, e eu de novo insisti em jogar minha futura carreira acadêmica no espaço.

Eu disse:

- Essa teoria, que contraria frontalmente aquela desenvolvida por Pontes de Miranda sobre a incidência das normas jurídicas, não explica nem a incidência de ICMS sobre a venda de um par de sapatos!

Ocasião em que fui atordoado com o seguinte contra-argumento:

- Mas o que é um sapato?

Mais uma vez, Davi venceu Golias.

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