I
– Propedêutica
Sempre
fui aficionado por duelo. Seja de que tipo for. Fascina-me o confronto entre
dois homens, entre duas vontades, entre duas inteligências, entre dois sistemas.
Gosto
tanto, que assisto a todos; inclusive a lutas, que sempre são tachadas pelos
espíritos efeminados como excessivamente violentas. Mas aprecio principalmente
os debates acadêmicos, as disputas intelectuais.
Acho
que por isso tornei-me advogado, e um daqueles que gosta do litígio, que não se
satisfaz com um bom acordo ainda que a demanda seja ruim. A experiência de
duelar num processo é a mim muito prazerosa.
E,
para iniciar o texto, não há como deixar de recordar um debate acadêmico que
presenciei enquanto ainda estava na faculdade.
À
minha frente, dois grandes Professores de Direito Penal: Luiz Flávio Gomes e
Cezar Roberto Bitencourt.
O
Professor Luiz Flávio Gomes, com aquele sotaque esquisito e cuja origem me é
inteiramente desconhecida, iniciou a pregação de uma nova teoria do delito. À
época, ele estava envolvido com a tal imputação objetiva, da qual até hoje não
sei a utilidade.
Explicou.
Expôs.
Argumentou.
Prestei
bastante atenção e sinceramente não notei por que tal teoria seria assim tão
revolucionária. Na minha cabeça, tudo se resolvia ainda de acordo com a velha
teoria do delito.
E,
quando chegou a vez do Professor Cezar Bitencourt falar, ele simplesmente não
disse outra coisa: esclareceu que a teoria da imputação objetiva surgira para resolver
problemas que já estavam resolvidos, para ressuscitar defuntos que havia muito
estavam sepultados.
Não
entrarei em detalhes, porque não é desse duelo que quero tratar. Sei que daquele
dia em diante minha vida de acadêmico mudou.
Simplesmente
me tornei um reacionário.
Não
aceito as teorias revolucionárias, sem antes conhecer bem aquelas que as
precederam.
Ganhei
um novo impulso esses dias. Leio ainda o livro Teoria Geral das Isenções
Tributárias, do Professor Souto Maior Borges.
Ele,
um dos maiores tributaristas do país, foi criticado por modernistas que
simplesmente não entenderam suas colocações. Ou por modernistas que, sem
conhecerem a doutrina de Pontes de Miranda, na qual o Professor Souto Maior
Borges declaradamente sustenta suas posições, se metem a contestar algo que
simplesmente desconhecem.
E,
graças a esses debates de gigantes, ouso narrar um outro, em que me envolvi dia
desses numa aula de Direito tributário.
II
– O Professor Eurico de Santi (Golias)
No
IBET, há duas sumidades: o Professor Paulo de Barros Carvalho, com suas
modernas teorias da linguagem, e o Professor Eurico de Santi, que até hoje é
conhecido e reconhecido como o mais brilhante jovem da PUC/SP.
Pois
bem. Estava eu num sábado, quando um colega me ligou desesperado:
-
Tiago, você não vai à aula do Eurico?
Quando
ouvi aquilo, com a ênfase que meu colega colocou no Eurico, quase caí da cadeira. Imediatamente me vesti e fui à aula.
Cheguei
lá e vi um rapaz ainda muito jovem, talvez oito ou nove anos mais velho que eu.
Logo pensei que se tratasse de um gênio, de um Einstein do Direito tributário.
Trata-se,
sim, de um gênio; mas não chega a ser um Einstein.
Logo
o Professor Eurico começou a explicar a teoria da incidência tributária, tal
qual estruturada por Paulo de Barros Carvalho.
Antes
de esclarecer qualquer outra coisa, ressalto que sempre tive aversão aos livros
do Professor Paulo; seja porque ele se coloca como alguém acima do bem e do
mal; seja porque a malta de puxa-sacos que se formou na PUC/SP o elogia em
demasia – o que provoca em mim, um reacionário, certa antipatia.
Mas
vou ao que interessa.
O
Professor Eurico então começou a discorrer sobre a incidência da norma
jurídica, esclarecendo em primeiro lugar que ela não se dá automática e infalivelmente, como bem disseram Pontes de Miranda e
Alfredo Augusto Becker.
Ainda
de acordo com o Professor Eurico, que retrata com fidelidade a posição do
Professor Paulo de Barros Carvalho, a incidência da norma jurídica confundia-se
com sua aplicação. Ou seja: só haveria incidência se, e somente se, uma
autoridade competente aplicasse a norma jurídica, porque a autoridade
competente, ao aplicar a norma geral e abstrata prescrita num determinado
diploma normativo, veicularia uma norma jurídica individual e concreta com a
qual estabeleceria o liame obrigacional entre o contribuinte e o Fisco.
Logo
que ouvi isso, não me contentei. Já havia lido tal teoria nos livros do
Professor Paulo de Barros Carvalho, e com ela nunca assenti.
Perguntei,
então:
-
Mas, Professor Eurico, qual é a norma individual e concreta que obriga a
autoridade competente a aplicar a norma geral e abstrata num determinado caso?
Um
silêncio profundo tomou conta da sala de aula.
Pensei:
Fiz a maior meleca da minha vida, nunca mais conseguirei um mestrado em
qualquer canto do Brasil.
Como
não entrarei no mestrado mesmo, então continuo a narração.
Note
que a teoria da incidência desenvolvida pelo Professor Paulo de Barros Carvalho
tinha um inocultável defeito lógico. A autoridade administrativa supostamente incumbida
de aplicar a norma geral e abstrata não se encontrava obrigada a fazê-lo por
uma norma individual e concreta, pois, para que estivesse obrigada a tanto, uma
outra autoridade administrativa deveria aplicar a norma geral e abstrata para
obrigá-la, e assim por diante, numa regressão ad infinitum.
Não
sabendo como resolver o problema, que realmente é intransponível, o Professor
Eurico então começou a falar sobre as qualidades da teoria que defendia, que
era humanista et cetera e tal.
Ele
novamente abriu um espaço, e eu de novo insisti em jogar minha futura carreira
acadêmica no espaço.
Eu
disse:
-
Essa teoria, que contraria frontalmente aquela desenvolvida por Pontes de
Miranda sobre a incidência das normas jurídicas, não explica nem a incidência
de ICMS sobre a venda de um par de sapatos!
Ocasião
em que fui atordoado com o seguinte contra-argumento:
-
Mas o que é um sapato?
Mais
uma vez, Davi venceu Golias.
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